Gestão escolar e protagonismo docente na EJA: elementos para uma relação democrática

Autora: Isabel Cristina Rodrigues
Orientador: Prof. Dr. Ricardo de Sousa Moretti

AGRADECIMENTOS

Ao orientador desta monografia, o Prof. Dr. Ricardo de Sousa Moretti, por suas valiosas contribuições. As aulas na UFABC, as sugestões e as problematizações nas reuniões de orientação ampliaram em grande medida meu olhar sobre este texto, concomitante a isso, a admiração e o carinho pelo mestre.
À Prof. Dra. Sônia Maria P. Kruppa, pelas excelentes aulas neste curso de Especialização. Os ensinamentos auxiliaram-me a compreender e lutar mais e melhor pelo segmento da Educação de Jovens e Adultos na condução do meu trabalho.
Aos assessores e articuladores do pólo de São Bernardo do Campo: Daniel Mendes, Douglas Pereira e Hugo Allan Matos, pelo acompanhamento estreito no decorrer do curso e pelas riquíssimas discussões realizadas em torno do mundo do trabalho e da Economia Solidária.
À Regina Oliveira, pelo compromisso com o nosso curso, presença e compreensão sempre presentes em todos os momentos que precisei.
Ao Gilmar de Souza pela ajuda na formatação do texto.

“Para permanecer vivo, educando a paixão, desejos de vida ou de morte, é preciso educar o medo e a coragem. Medo e coragem de ousar. Medo e a coragem em assumir a solidão de ser diferente. Medo e coragem de romper com o velho. Medo e coragem de construir o novo.”
Madalena Freire

 

SUMÁRIO

  • APRESENTAÇÃO
  • I. INTRODUÇÃO
  • II. EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E ECONOMIA SOLIDÁRIA: UMA JUNÇÃO MAIS QUE NECESSÁRIA
  • III.  GESTÃO  ESCOLAR,  PROTAGONISMO  DOCENTE  E  DEMOCRACIA:   DISCUTINDO CONCEITOS
  • IV. O HTPC, A GESTÃO  ESCOLAR E O DOCENTE:  CONFLITOS & CONSENSOS PARA A NECESSÁRIA DEMOCRACIA
  • V. CONSIDERAÇÕES FINAIS
  • REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
  • ANEXOS

 

APRESENTAÇÃO

Vou iniciar esta apresentação tendo como principal elemento, o caminho trilhado para a constituição deste trabalho monográfico, trazendo informações de como ele foi constituído, para isso, creio que primeiramente seja relevante apontar, mesmo que rapidamente, o contexto no qual se desenvolveu a temática de estudo aqui abordada.

Atuo como Coordenadora Pedagógica (CP) em uma escola de Educação de Jovens e Adultos (EJA) em São Bernardo do Campo. Atendemos nove turmas no total, as quais são divididas entre cursos profissionalizantes (Cursos Livres) e cursos de EJA regular (Ensino Fundamental I).

Assim que ingressei na Prefeitura de São Bernardo do Campo, atuando com o Ensino Profissionalizante, iniciei também o curso de Especialização em Educação de Jovens e Adultos e Economia Solidária na Universidade Federal do ABC (UFABC), ou seja, o “mergulho” nas questões do mundo do trabalho e as suas inúmeras contradições me foram apresentadas quase que concomitantemente. Digo isso porque os conceitos trabalhados na Economia Solidária tiveram o papel importante de problematizar a todo instante os modos de produção capitalista. Avalio que esta relação foi de grande valia para a condução do meu trabalho como gestora escolar de EJA, levando em conta que o público que atendemos é aquele que sempre esteve à margem de direitos sociais básicos como o direito à educação e às condições dignas de trabalho.

Logo no início do curso me chamou bastante a atenção à discussão em torno da autogestão, como um princípio importante a ser considerado na Economia Solidária. Este princípio, entre seus vários efeitos, pretende igualar o poder de decisão entre os sujeitos. O mesmo me interessou porque sempre foi motivo de preocupação para mim, a maneira como ocorrem os mecanismos de decisão dentro da escola. Parece-me que às vezes, o sentido da decisão coletiva é totalmente deturpado, nem sempre considerando a real necessidade de todos os sujeitos ali envolvidos, por isso, minha pretensão em relacionar autogestão com gestão escolar. Como “pano de fundo” neste processo de decisão estava meu intento de poder gerar nos professores a compreensão dos mesmos em relação a uma prática emancipadora para com os jovens e adultos. Uma prática que não fosse pautada em uma simples reprodução do conhecimento. Digo isso porque percebia aulas distanciadas das reais necessidades dos educandos. As reuniões em que tínhamos que discutir ou decidir coletivamente os conteúdos importantes a serem trabalhados em sala de aula eram as mais desafiadoras para mim. O motivo, creio eu, era porque “mexia” com concepções dos professores há muito tempo acomodadas. Como constituía um desafio tratar dessa questão, achei que seria interessante pesquisar os processos decisórios envolvendo professores e gestão escolar.

Olhando de um jeito mais distanciado hoje, eu achava que poderia utilizar de forma mais direta que o possível, os conceitos da Economia Solidária, na escola. Depois fui vendo que não é bem assim, é preciso adequações e muitas estratégias que demandam compreender que este objetivo tem suas limitações. A escola, como bem afirma Bourdieu (1998), é um dos principais mecanismos de reprodução da desigualdade social. Oras, sendo assim, não é fácil implantar ali, uma forma de gestão que seja fundamentada na solidariedade e na equidade entre os sujeitos. Creio que não posso dizer que esta possibilidade esteja descartada, isso seria uma irresponsabilidade e um comodismo perante as mudanças necessárias na educação. Também não posso ignorar as inúmeras contribuições que Paulo Freire nos trouxe no que tange as necessárias práticas de emancipação para com os sujeitos jovens e adultos. Mas que não sejamos incautos, e saibamos pisar no terreno que nos é colocado. Assim, conversando com meu orientador Moretti, chegamos à conclusão que discutir conceitos de gestão e autogestão na EJA talvez fosse um tema de muita complexidade para um trabalho monográfico. Não que não fosse importante, mas que demandaria muito mais pesquisa, muito mais cuidado, algo que poderia ser levado para o doutorado.

Não abandonei meu objetivo primeiro que se relacionava com a ideia de estudar questões relacionadas à promoção de uma prática mais contextualizada e significativa dos professores para com o seu grupo de educandos. Na verdade meu objetivo se relacionava com o desejo de ver mudança no comportamento destes educandos. Achava que eles chegavam tão cabisbaixos na escola, tão achando que não eram “nada”. Mas como promover mudanças nos educandos sem provocar nos professores a mudança? Creio que não seja possível. Assim sem deixar de lado a relevância do objetivo primeiro, resolvemos mudar um pouco o rumo da prosa em relação ao estudo. A questão central seria o protagonismo docente, como uma forma de não abandonar a importância de o professor ser sujeito de sua prática, na possibilidade de promover ações mais contextualizadas com seus alunos em sala de aula.

Eu e Moretti continuamos discutindo como poderia ser desenvolvida minha temática de estudo e ele me provocou: “o que você ainda não sabe que gostaria de saber?” Boa pergunta. Na próxima reunião eu disse: “Quero saber mais sobre os conflitos que estão envolvidos nos processos de decisão”. Minha resposta foi esta porque assim como me incomodo com as distorções na prática com os alunos, me incomoda igualmente, a resistência que enfrento na minha prática como gestora, com as questões necessárias para que estas mudanças ocorram. Agora como isso se relaciona com o tema de estudo que é protagonismo docente iremos discutir mais a frente, nos capítulos que seguem.

I. INTRODUÇÃO

As questões que compõem este trabalho monográfico giram em torno do protagonismo docente e da gestão escolar junto aos Jovens e Adultos em uma escola da rede pública municipal de ensino de São Bernardo do Campo. Procurei enfatizar a importância da democracia como foco a ser buscado na relação entre os sujeitos que compartilham do espaço escolar.
Quando falamos de democracia, de alguma maneira, estamos enfatizando a importância da participação, porém, também sabemos que participar não é tarefa simples, agregar a todos os sujeitos escolares para este fim, constitui desafio ainda maior. Na educação temos teorias que nos ajudam a entender esta falta de participação no universo escolar.

Saviani (2008) em seu livro “Escola e Democracia” descreve as diferentes concepções que permeiam a educação. Ao evidenciar as características da escola tecnicista ressalta a relação desta com o mundo do trabalho. Os objetivos e métodos desta escola centram-se na técnica e dialogam com o propósito de formar um sujeito voltado exclusivamente ao mercado de trabalho. É preciso produzir, mas não necessariamente pensar sobre o que se produz. É preciso aprender, porém, de forma fragmentada. Não há uma preocupação em formar um sujeito reflexivo, que pense sobre os problemas sociais e busque estratégias para superá-los. O método de ensino permeado por uma lógica excludente de avaliação valoriza somente os resultados e não o percurso para se chegar até eles.  A escola contribui a decidir desde cedo, quem está preparado ou não a assumir este mercado de trabalho. Na lógica excludente, não há lugar para todos, assim, é preciso filtrar os “bons” dos “ruins”.

Muitos dos docentes foram formados neste modelo de escola e mantêm este pensamento por não terem vivenciado na prática, outra educação. O mesmo acontece com os gestores escolares. Ao ter como função gerir uma escola que seja democrática, encontro diversas dificuldades. Mesmo assim, entendo a necessidade de se buscar caminhos para concretizá-la, pois é fato que a relação ditatorial fragmenta as relações e distancia as pessoas de uma vivencia mais humanizadora e solidária.  A fragmentação enfraquece a luta e a valorização do ter em detrimento do ser banaliza as relações humanas, portanto, de alguma maneira, quando falamos em democratizar as relações na escola estamos falando em possibilitar uma condição ampliada de vida aos educandos, aos educadores e aos gestores.

Dentro da perspectiva dos processos de participação, encontramos várias discussões que tratam da temática em outros setores para além da educação. Na área da saúde, por exemplo, Serapioni e Romani (2006) destacam que este sistema ainda é incapaz de promover uma interação com seu ambiente social e um dos problemas que inviabilizam a melhoria nos serviços está na forma como ocorrem os mecanismos de participação.

Ninguém nega que a participação é uma condição necessária para que uma população melhore a sua saúde e sua qualidade de vida, porém, segundo os autores, a falta de uma definição clara e compartilhada do conceito de participação é responsável pela ampla variedade de significados e de orientações ideológicas adotadas nos diferentes contextos. Os colegiados de participação no setor da saúde apresentaram problemas em comum: a impressão de que a discussão realizada não encontrava respostas, nem soluções imediatas mediante os problemas apresentados; a não preparação dos sujeitos a desenvolver um papel complexo e bastante compromissado, e sobretudo, a demora para por em ação as recomendações discutidas, o que criava um clima de ceticismo e desconfiança.

Neste sentido, no que se refere ao universo escolar, devemos a Paulo Freire a defesa de uma escola que entende que o educando é sujeito de sua própria história. Em suas diversas manifestações de luta este ilustre educador permitiu a um numero expressivo de pessoas que pertenciam aos “de baixo” enxergarem-se como agentes transformadores na busca por uma sociedade mais justa e igualitaria. Deu-lhes a  chance  de escolher seu próprio caminho, em ai invés  de ficarem sempre presos às alternativas impostas pelas elites.

Em relação a esta pesquisa, a mesma foi desenvolvida no Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo[1] (HTPC), momentos destinados a formação de professores e que é coordenado e planejado pela Coordenadora Pedagógica, no caso, função desempenhada por mim, pessoa que desenvolve este estudo.

Participa deste estudo, um grupo de nove educadores que atuam na modalidade de Educação de Jovens e Adultos na EJA regular (Ensino Fundamental I) e nos cursos livres profissionalizantes.

Segundo Pichon- Rivière (1991) grupo é um “conjunto restrito de pessoas ligadas entre si por constantes de espaço e tempo, articuladas pela mútua representação interna e que atua através de complexos mecanismos de assunção e atribuição de papéis, que se propõe de forma explícita ou implícita uma tarefa que constitui uma finalidade” (p. 65-66). O explícito seria o concreto, fácil de ver. Do outro lado está o que é implícito, questão constituída de medos básicos (diante de mudanças, ora alternativas transformadoras ora resistência à mudança). Pichon-Rivière também destaca que a resistência à mudança é consequência dos medos básicos que são o “medo à perda” das estruturas existentes e “medo do ataque” frente às novas situações, nas quais a pessoa se sente insegura por falta de instrumentação.

Levando em consideração as contribuições de Pichon-Riviére chegamos à compreensão da necessidade que o grupo tem de ser sensibilizado sobre as necessidades de mudanças que lhe são colocadas. Sensibilizar, portanto, é provocar e tornar a pessoa sensível, fazer com que ela participe de forma inteira. Por outro lado, lembra o mesmo autor que um grupo obtém uma adaptação ativa à realidade quando adquire insight, quando se torna consciente de certos aspectos de sua estrutura dinâmica. Todas estas questões auxiliam o sujeito a ser protagonista de suas ações.

Quando o tema se relaciona com protagonismo docente e processo de tomada de decisões existe um problema a ser discutido. Assim, este estudo tem em sua composição, algumas perguntas: Como são tomadas estas decisões? Quem vence é a maioria? E a minoria silenciada? É a vontade do mais forte que prevalece? Como é o comportamento do grupo ao participar dos processos de decisão? E a coordenação? Como gere as relações? Como resolve a eminência dos conflitos?

Trata-se de um estudo qualitativo e o procedimento metodológico utilizado é o dá pesquisa-ação, um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo (THIOLLENT, 1986).

Os objetivos deste estudo consistem em discutir os processos de tomada de decisões nos HTPC, estabelecendo um diálogo com a relação democrática entre gestão escolar e o grupo de professores, na perspectiva do protagonismo docente.

As reflexões teóricas apontadas nos ajudam a ampliar a compreensão sobre os desafios colocados mediante os processos de tomadas de decisão. Nenhum deles deixa de mencionar o jogo de forças existente entre os diferentes grupos mesmo quando inseridos num contexto comum de participação. Como estamos falando de protagonismo docente na EJA espera-se que este estudo possa trazer elementos que ajudem a fortalecer o debate sobre a necessidade de um ensino voltado a qualidade da educação ao publico jovem e adulto da escola pública, para isso, é inegável a importância de se ter conhecimento sobre os mecanismos que impedem uma participação mais justa e igualitária por parte de todos aqueles que estão envolvidos neste processo educacional.

Este texto conta com cinco capítulos. O primeiro, que é este, a introdução, tem como objetivo se fazer conhecer em sua temática, objetivos, procedimento metodológico e uma breve explicação de cada capítulo que a compõe. O segundo traz o percurso histórico da EJA, juntando a este a importância da Economia Solidária como um fator que fortalece a luta deste segmento educacional na realidade de nossas escolas. O terceiro capítulo conceitua termos como “gestão escolar’, “protagonismo docente” e “democracia”. Não deixa de problematizar estes termos no sentido de que os mesmos não estão prontos e acabados. Fazem parte de um constante vir a ser. O quarto capítulo pode ser considerado também o “coração” desta monografia. É ali que vamos falar com mais detalhes das discussões desenvolvidas nos HTPC, trazendo a importância dos conflitos e do consenso para a necessária relação democrática desejada nos espaços escolares.

Nas considerações finais “fechamos” a discussão com algumas questões necessárias para a continuação do debate da emancipação dos sujeitos na EJA, certos de que tal condição é sinônimo de luta constante. O que aprendemos aqui é que os conflitos não são nocivos à democracia, pelo contrário, se bem trabalhados, são fatores que contribuem para a sua concretização.

II. EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E ECONOMIA SOLIDÁRIA: UMA JUNÇÃO MAIS QUE NECESSÁRIA

Embora a Educação de Jovens e Adultos venha se dando desde o Brasil Colônia, de uma forma mais assistemática, as iniciativas do governo no sentido de oferecer educação para os jovens e adultos são recentes.

Já no Brasil Império começaram a apontar algumas necessidades do ensino noturno para adultos analfabetos. Em 1876 foi escrito um relatório, pelo então ministro José Bento da Cunha Figueiredo, defendendo a existência de duzentos mil alunos frequentes às aulas noturnas.

Segundo Cunha (1999), com o crescimento da industrialização no Brasil, no início do século XX, inicia-se um processo lento, mas crescente de valorização da educação de adultos. A mesma trazia pontos de vista antagônicos: o ensino da língua escrita visando o domínio das técnicas de produção, e sua antítese, como instrumento de ascensão social; a alfabetização de adultos vista como meio de progresso do país e a valorização desta voltada para a ampliação da base de votos.

A partir de 1940, começou-se a detectar índices altos de analfabetismo no Brasil, o que levou o governo a criar um fundo destinado à população de analfabetos. Ainda na década de 1940, com a criação da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) ocorreu então, por parte desta, a solicitação de que países como o Brasil, somassem esforços para a educação dos adultos analfabetos. Devido a este movimento, em 1947, foi lançada pelo governo a 1ª Campanha de Educação de Adultos que propunha: alfabetizar os adultos em três meses, oferecendo um curso primário em duas etapas de sete meses. Oferecia também a capacitação profissional e o desenvolvimento comunitário. Começou neste cenário uma discussão mais intensa sobre o analfabetismo e a educação de adultos no Brasil. Neste contexto, o analfabetismo era visto como causa e não como efeito do precário processo de desenvolvimento no Brasil. O adulto analfabeto era identificado como indivíduo incapaz e marginal, submetido aos padrões de extrema pobreza, não podendo então, votar ou ser votado (CUNHA, 1999).

Segundo Soares (1996) um dos motivos que levou à 1ª Campanha da alfabetização foi o fim do Estado Novo, que trazia um processo de redemocratização o que acabava gerando também a necessidade de ampliação do eleitorado no país. Esta primeira Campanha somava diversos problemas em sua composição, um deles é o problema da desvalorização do magistério, pois o ato de educar era visto como missão e não como profissão.

Muitas críticas foram feitas à metodologia de alfabetização adotada para os adultos nesta Campanha. Entre elas destacam-se as precárias condições de funcionamento das aulas, a baixa frequência e aproveitamento dos alunos, o baixo salário, a desqualificação dos professores, a inadequação do programa e do material de apoio à clientela e à superficialidade do aprendizado pelo tempo escasso destinado para tal. Percebe-se nas palavras de Soares (1996) que o problema da EJA no Brasil tem origem e é antigo. Na ocasião da 1ª Campanha, deu-se o declínio da mesma, devido aos resultados insatisfatórios. No entando, entre todas as delegações, uma em especial foi destaque. Esta era do Estado de Pernambuco. Não é surpresa o destaque, quando sabemos que quem esteve à frente da ação foi o educador Paulo Freire, que propunha uma comunicação diferente entre educador e educando e uma adequação do método ao perfil das classes populares.

Apesar dos problemas da 1ª Campanha ao menos uma estrutura mínima de atendimento foi assegurada. No início da década de 1960, a sociedade civil se articulou para que houvessem as mudanças das iniciativas públicas de educação de adultos. Uma nova pedagogia para a alfabetização de adultos foi surgindo. A mesma tinha Paulo Freire como principal referência. Surgiu um novo paradigma pedagógico- a ligação entre a problemática educacional e a problemática social. A ideia defendida da ocasião era de que a educação deveria influenciar na estrutura social que produzia o analfabetismo, partindo da crítica à realidade existencial dos educandos.

Em 1963, o Governo deu-se por encerrada a 1ª Campanha e designou a Paulo Freire a responsabilidade de estar à frente do Programa Nacional de Alfabetização de Adultos, porém, pouco tempo depois, em 1964, com o Golpe Militar este trabalho sofreu uma ruptura, já que o trabalho de Freire passou a ser visto como ameaça à ordem instalada.
Com a retirada de Paulo Freire do cenário brasileiro e com a ditadura, foi dado início a programas de alfabettização assistencialistas e conservadores. Assim, em 1967, foi criado o Movimento Brasileiro de Alfabetização (o MOBRAL), voltado à população de 15 a 30 anos, visando a aquisição da leitura, da escrita e do cálculo.

Em 1970 deu-se a expansão do MOBRAL, dando início a uma proposta de educação integrada, que tinha como objetivo a conclusão do antigo curso primário. Com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, LDB 5692/71, foi implantado o ensino supletivo. Em 1974, o MEC propôs a implantação dos Centros de Estudos Supletivos (CES), que se pautavam na tríade tempo, custo e efetividade. O mesmo era fruto do acordo entre MEC e USAID, o que faziam estes cursos terem a forte influência do tecnicismo. Como consequência, deu-se a evasão, o individualismo e a certificação rápida e superficial a estes educandos.
Nos anos 80, com a abertura política, o formato de uma educação mais emancipadora começaram a ganhar mais evidência. Em 1985, o MOBRAL foi extinto dando lugar a Fundação EDUCAR, que deixou de executar diretamente os projetos em alfabetização e passou a apoiar financeiramente e tecnicamente as ações existentes. Em 1988, com a Constituição Federal do Brasil, teve a defesa da ampliação do dever do Estado para com a EJA, garantindo o ensino fundamental obrigatório e gratuito a todos.
Nos anos de 1990 teve início uma intensa mobilização nacional em torno da EJA. Foram organizados os Fóruns Estaduais de EJA que vêm se expandindo em todo o país. Em 1999, ocorreu o 1º ENEJA (Encontro Nacional de Educação de Jovens e Adultos), onde participaram os Fóruns do Rio de Janeiro, de Minas Gerais, do Espírito Santo, do Rio Grande do Sul e São Paulo. Este Encontro terminou por ser um estímulo para o surgimento de outros Fóruns.

Com a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação- LDB 9334/96, foi defendido em seu artigo 3º, a igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola, o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas. Embora a lei tenha dedicado apenas três artigos à EJA, ela determina que este serviço faz parte do Ensino Fundamental, o que criou possibilidades de confronto entre a demanda, o volume e a qualidade da oferta, gerando um maior compromisso do setor público com a EJA.

Em 1990, o governo se desobriga quanto ao atendimento da EJA, passando esta responsabilidade aos municípios. Surgem assim, inúmeras iniciativas, ocorrendo parcerias entre muninípios, Organizações Não Governamentais (ONGs) e Universidades. Neste contexto, surgem os Fóruns de EJA que segundo Soares (2004) são movimentos que articulam instituições, socializam ideias, socializam iniciativas e intervém na elaboração de políticas para a EJA. Os mesmos, segundo a autora têm contribuído em grande medida para a discussão e o aprofundamento do que seja a EJA no Brasil.

Como citado na apresentação desta monografia, a Economia Solidária pode ser um caminho importante no currículo da EJA, sobretudo quando se pretende discutir a temática do trabalho. Ao ter a Economia Solidária como base, estamos defendendo outra relação do homem com o seu meio de produção, uma relação mais humanizadora, menos alienante. Como é fato que os educandos de EJA sempre tiveram uma relação de quase escravidão com o trabalho, nada mais oportuno que se agregue a educação das letras com a educação do trabalho. De alguma maneira, falando de modo resumido, foi esse o ponto fulcral deste curso de Especialização, discutir a Economia Solidária, problematizando as relações de trabalho, o que do meu ponto de vista, não existe forma mais apropriada de tratar este tema.

Pela importância que a Economia Solidária pode ter no currículo da EJA, faz-se necessário destrinchar os princípios da mesma e o que ela propõe no cenário de produção na relação entre homem, sociedade e trabalho.

A Economia Solidária é uma forma de produção, consumo e distribuição de riqueza que valoriza o ser humano e não o lucro. Sua base pauta-se em associações e cooperativas que são voltadas para a produção, consumo e comercialização de bens e serviços de modo autogerido, tendo como finalidade e reprodução ampliada da vida.

Pode-se dizer que a Economia Solidária surge na Primeira Revolução Industrial, como resposta dos artesãos expulsos dos mercados com a entrada das máquinas a vapor (SINGER, 2002).

A Economia Solidária é um modo específico de organização de atividades econômicas. Ela se caracteriza pela autogestão, ou seja, pela autonomia de cada unidade de empreendimento e pela relação de equidade entre seus membros.

Existem vários autores que se dedicam à conceituação da Economia Solidária, sendo que os principais são Paul Singer e Euclides André Mance. Para Singer, a Economia Solidária deve ser uma estratégia possível de luta contra as desigualdades sociais e o desemprego. Singer faz uso da mudança nas relações de produção provocada pelo capital para lançar os alicerces de novas formas de organização da produção, seguindo uma lógica oposta àquela que rege o mercado capitalista (SINGER, 2002).

Já segundo Mance, o conceito da Economia Solidária agrega não apenas a geração de postos de trabalho, mas sim, uma colaboração solidária que visa à construção de sociedades pós-capitalistas em que seja garantido o bem-viver de todas as pessoas (MANCE, 2008).

E o que aproxima de fato a EJA da Economia Solidária?

A Economia Solidária defende o fim da opressão do homem pelo homem, para uma relação mais horizontal em que as tomadas de decisões sejam responsabilidade de todos, não apenas de uma minoria consolidada para diminuir ou extinguir o direito do outro.

A EJA pautada na emancipação do sujeito não pensa essa relação diferente disto.

De acordo com Mance (2008, p. 126-127) os princípios e valores que devem reger esta relação horizontal são:

Solidariedade: significa que todos os seres humanos fazem parte de uma mesma comunidade universal, em igualdade de direitos humanos e de deveres humanos para com esta, na promoção das liberdades públicas e privadas eticamente exercidas;
Autonomia: […] o princípio da autonomia se manifesta, entre outras possibilidades, na autodeterminação dos fins e na autogestão dos meios;
Responsabilidade: toda a humanidade é responsável por cada pessoa em particular e cada pessoa é responsável por si e pela humanidade toda, devendo as pessoas, comunidades, povos, países e nações buscarem a melhor equação possível na promoção das liberdades públicas e privadas, de cada pessoa e toda a humanidade;
[…]
Equidade: toda doação realizada por qualquer pessoa à comunidade deve ser retribuída pela comunidade, na mesma proporção, resguardando-se  subsidiariedade da comunidade em relação a todos, a autonomia de cada um em relação à comunidade e o princípio de promover-se a libertação de todos, compartilhando de maneira justa os meios disponíveis.
[…]
Democracia: a expansão do exercício das liberdades, promovendo-se responsavelmente a autonomia solidária, assegura a cada pessoa o direito de participar das decisões que afetam a vida pública de sua comunidade, ou sua vida privada, sendo pois a democracia um princípio requerido […] do exercício da atonomia coletiva e da libertação de todos.
Sustentabilidade: a comunidade humana é parte integrante da natureza, pois a consistência de cada pessoa não pode subsistir sem ela. A expansão das liberdades públicas e privadas exige a proteção da natureza e dos ecossistemas em particular. A solidariedade entre os membros da espécie humana supõe a integração das comunidades humanas aos ecossistemas, que devem ser protegidos em favor de todas gerações, as presentes e futuras.
(idem, p.126-127)

Por mais que na sociedade capitalista estes valores pareçam utópicos, acabam por reafirmar a existência de que assim como existem forças que colaboram com a lógica da exclusão, existem também, aqueles que lutam por uma sociedade mais igual. A palestra de Paul Singer no começo deste curso de Especialização foi uma mola propulsora para acreditar na importância da Economia Solidária. O legado de Paulo Freire é outra fonte de inspiração para continuar acreditando que a EJA pode contribuir para a concretização de outra sociedade. Ao conhecer Paulo Freire e Paul Singer, o que não nos faltam são boas referências para dar continuidade a esta luta.

III. GESTÃO ESCOLAR, PROTAGONISMO DOCENTE E DEMOCRACIA: DISCUTINDO CONCEITOS

Apesar de a palavra democracia ser bastante difundida no âmbito político e também na educação, ainda é um termo que intriga a muitos. Talvez o motivo, seja porque a mesma não é tida como algo dado, completo, acabado.

O sentido da democracia está relacionado à busca pela igualdade, ou pela vontade da maioria. No entanto, há de se considerar que são múltiplos os interesses dos sujeitos na teia que compõe a sociedade. Para entender as polêmicas existentes nas relações entre os sujeitos faz-se necessário uma retomada teórica sobre os discursos do poder. Michel Foucault é um teórico legitimado na discussão do termo. Seu pensamento entre diversas outras questões foi importante para se refletir até aonde se dá o domínio dos homens pelo poder ou é o poder, um termo abstrato que ao gerar encantamento sobre os sujeitos, também os domina? O autor ajudou a desmistificar a relação entre poder e repressão. Para ele nem sempre o poder se dá por essa via. Neste caso, o autor explica:

O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir. (idem, 2001, p. 08)

Apesar de enfatizar quem nem sempre as relações de poder se consolidam na repressão, o autor não deixa de afirmar que existe uma intensa tentativa de se estabelecer liames e mecanismos de controle sobre o corpo social. Nestas relações de poder, os discursos implementados voltam-se para produzir fatores que despersonalizam os indivíduos, deixando-os alienados e na condição contínua de obediência. Além das relações de forças que coexistem entre grupos de diferentes interesses, Foucault assenta-se nos jogos de poder na relação com o eu, ou seja, no processo de subjetivação, que representam lutas para as possibilidades de modificação no espaço. No entanto, o poder que produz corpos dóceis e controlados somente se mantém porque estes permitem ser domesticados. Logo, o indivíduo precisa compreender que o poder também o constitui, que não há nenhuma possibilidade de exercício de poder sem que se afirme um conjunto de verdades construídas e universalizadas, e sobretudo que ele permita-se obedecer, deixando-se dominar.

Paulo Freire quando defende a educação como prática da liberdade, coloca a classe popular como aquela que precisa se engajar na luta política visando a transformação social. Assim como Foucault ele acredita que a classe tem força, mas precisa se apropriar desta. Por mais que pareça diferente a composição teórica de Paulo Freire e Michel Foucault eles convergem no ponto de que é preciso vencer a ignorância para não se deixar dominar pelo outro. Ambos falam de protagonismo. No caso de Foucault, a questão do protagonismo não é intacta, está sempre envolvida numa relação de força, que ora pode estar de um lado, ora de outro, vai depender de como cada um dos lados se fortalece para vencer ou não o mecanismo de poder e controle que lhe é imposto.

Para que o exercício da democracia ocorra é preciso contrabalancear a relação de força entre as partes envolvidas. Seria possível que nessa relação todos saíssem ganhando? Se existe esta possibilidade porque a democracia nos parece tão utópica?  Em relação ao termo democracia, Muller (1995) destaca:

Admite-se geralmente que a democracia é o projeto político que melhor corresponde ao de uma sociedade de justiça e liberdade. Mas o próprio conceito de democracia encontra-se coberto por uma ambiguidade fundamental. Segundo o seu sentido etimológico, a palavra democracia significa “governo do povo”, “pelo povo” e “para o povo”, para retomar a expressão utilizada pela Constituição Francesa para definir o princípio da República. Mas a palavra democracia significa igualmente um governo que respeita as liberdades e os direitos do homem, de qualquer homem e de todos os homens. É claro que estes dois significados não são contraditórios, mas para realizar a democracia, o povo deve trazer consigo a exigência ética que funda o ideal democrático. A democracia é uma aposta na sabedoria do povo. Infelizmente, a sabedoria democrática do povo nem sempre está presente no acontecimento político. O povo pode tornar-se uma multidão, e a paixão apodera-se mais facilmente de uma multidão do que a razão. Na realidade, a verdadeira democracia não é popular, mas cidadã. A democracia deve ser o governo dos cidadãos, pelos cidadãos e para os cidadãos. É a cidadania de cada mulher e de cada homem da cidade que funda a democracia. É o exercício da cidadania que dá ela, existência. (idem, p.146)

Muller destaca que as decisões públicas não são tomadas pelo povo, mas sim, por um grupo dominante que impõe seus interesses de forma dissimulada, utilizando-se de códigos sociais compreensíveis apenas pelos sujeitos que se dão conta da existência do poder e de como acessá-lo.

Para dar conta de promover mecanismos em que a democracia tenha mais fluidez, Feffermann (2006) defende que é preciso ter em mãos um contrato social fundado na racionalidade social e política da modernidade ocidental, que para ela assenta-se a partir de três pressupostos. São eles:

[…] um regime de valores, um sistema comum de medidas e um espaço- tempo privilegiado. Esses princípios são congruentes entre si no espaço de deliberação política e do processo judicial […] O contrato social produz ou deveria produzir bens públicos, ou seja: legitimidade para governar, bem estar econômico e social, segurança e identidade coletiva e no final, resultar em bem comum. (idem, p. 243)

Para a mesma autora, a democracia deveria ser validada pelo contrato social, que por sua vez, iria considerar os interesses da coletividade, porém, a realidade é diferente do que se idealiza e o que ocorre é a “predominância da estrutura dos processos de exclusão que descaracteriza o contrato social”. Em outras palavras, o não cumprimento do contrato social afasta o exercício da democracia dos homens, o que inviabiliza a inclusão do outro na sociedade moderna.

Dentro da temática que este texto procura discutir, o que seria então, a democracia em uma escola da rede pública? Quais conceitos devem ser levados a efeito?

Dewey (1970), filósofo que desenvolveu uma importante discussão sobre democracia e educação na primeira metado do século XX, defende que a escola sempre influencia no desenvolvimento da personalidade dos sujeitos, refletindo por consequência, no contexto sócio-político. Assim, para que a sociedade viva sob uma ordem democrática deveria passar por uma formação específica, que do ponto de vista do autor, estaria associada a um processo de formação moral:

Temos de ver que a democracia significa a crença de que deve prevalecer a cultura humanística; devemos ser francos e claros em nosso reconhecimento de que a proposição é uma proposição moral, como qualquer ideia referente a deve ser […]. A democracia se expressa nas atividades dos seres humanos e se mede pelas consequências produzidas em suas vidas. (idem, 1970, p.212-213)

Encontramos em Dewey a concepção de formação humana que se destina à ordem democrática e se realiza por meio desta ordem. Educa-se pela e para democracia.

O termo gestão escolar está fortemente ligado ao processo democrático. Puig (2000) tem um posicionamento diferente de Dewey. Ele problematiza o jogo de interesse entre os diferentes sujeitos que compartilham espaços comuns em instituições como a escola, o hospital e a família. O autor defende que embora seja interessante definir um modelo desejável de relações políticas na sociedade, o termo democracia nem sempre é adequado para caracterizar estas instituições. Para ele, as mesmas são constituídas por agentes que têm interesses e status diferentes e existem para satisfazer demandas que, de maneira inevitável, implicam a ação de sujeitos com papéis e responsabilidades diferentes. Os diferentes sujeitos que fazem parte destas instituições são alheios à ideia de participação igualitária. Para ele, os pais têm um papel assimétrico em relação aos filhos, da mesma maneira que os professores o têm com relação aos seus alunos, o diretor com relação à equipe docente, ou os médicos com respeito aos seus pacientes.

Mesmo tendo esta visão, o autor não afirma, de fato, que as relações não possam tornar-se democráticas, mas para isso deve se conseguir um equilíbrio no jogo entre a assimetria funcional das relações interpessoais e a simetria democrática dos princípios que regem as instituições sociais.

Na perspectiva da simetria, o direito de expressão e de liberdade deve ser ampliado a todas as pessoas da instituição, independente de qualquer aspecto objetivo que as diferenciam como idade, títulos, bens materiais, entre outros. Já na assimetria, as peculiaridades dos sujeitos calcadas na diferença de conhecimentos e experiência, apontam para uma relação de autoritarismo e absolutismo.

Como gestora da escola pública, defendo de forma incondicional, superarmos a ideia da assimetria que tenta justificar a diferenciação entre os sujeitos. Não falo de qualquer diferenciação, claro que somos diferentes em inúmeros aspectos. Falo da diferenciação no trato, na diferenciação dos direitos, ou seja, não é porque é pobre que não tenha direito a dignidade, ao respeito, à vida, em sua forma ampliada de possibilidades.

Na realidade, a gestão escolar nas escolas representa um importante instrumento de democracia na sociedade, considerando que escola e sociedade estão intrinsicamente ligadas. Promover a democratização da gestão escolar significa estabelecer novas relações entre o universo escolar e o contexto social no qual está inserida. Se bem constituída, a democratização institucional torna-se um caminho para que a prática pedagógica torne-se efetivamente prática social e possa contribuir para o fortalecimento do processo democrático mais amplo. Como já destacou Paro (2002):

[…] tendo em conta que a participação democrática não se dá espontaneamente, sendo antes um processo histórico em construção coletiva, coloca-se a necessidade de se preverem mecanismos institucionais que não apenas viabilizem, mas também incentivem práticas participativas dentro da escola pública. (idem, p. 46)

Segundo o autor citado acima, a escola não é democrática só por sua prática administrativa e sim por toda a sua ação pedagógica e educativa, consolidada na igualdade de direitos dos sujeitos.

Quando citamos o termo “protagonismo docente” estamos nas entrelinhas querendo defender a necessidade de uma sociedade menos injusta, em que seus educadores tenham condição teórica e prática para entender e intervir tanto nos processos democráticos, como em algo mais fundante que é o fenômeno da desigualdade social.

Para trazer estas questões é importante colocar foco no significado da palavra protagonismo que é formada de duas raízes gregas: proto, que significa: “o primeiro, o principal” e agon, que significa “luta”. Agonistes, por sua vez, significa “lutador”. Protagonista quer dizer, então, o lutador principal, personagem principal, ator principal, ou mesmo agente de uma ação, seja ele um ente da sociedade civil ou do Estado, uma pessoa, um grupo, uma instituição ou um movimento social (COSTA, 2000, p.150). Levando em consideração o conceito definido por Costa, protagonista é aquele sujeito autônomo, sabedor das necessidades, não sujeitado pelo outro.

Ao ser destacado o que entendo por sujeito protagonista parto para uma próxima etapa que procura enfatizar o que deve reger as ações de um professor protagonista. Para isso, minha fonte de inspiração foi a obra do mestre Paulo Freire: Pedagogia da autonomia.

Em Pedagogia da Autonomia Paulo Freire defende que o professor deve ser um observador cuidadoso das necessidades de seus educandos. Os mesmos têm histórias individuais e coletivas que devem ser levadas a efeito no exercício docente. Os conteúdos a serem ensinados precisam ser os mais claros possíveis atentando-se a uma questão que é primordial na concepção de Freire: ensinar não é transmitir conhecimento, nem amoldar o educando num padrão acomodado e indeciso, mas sim, criar possibilidades para a produção e construção do conhecimento.

Um professor protagonista é rigoroso em sua prática e se alonga à produção de condições em que aprender criticamente é possível exigindo a presença de educandos criativos, inteligentes, curiosos, humildes e persistentes. Ele não se contenta com um sujeito cabisbaixo. Ele provoca a reflexão e acima de tudo, tem em sua prática, uma condição que é sine qua non para atuá-la, a amorosidade. E não uma amorosidade passiva, nem territorializada. O educador que ama, ama a humanidade, o ser humano, e quer vê-lo bem, feliz, livre das injustiças sociais e da desigualdade.

O educador protagonista incita à pesquisa. Tanto para afirmação contínua da sua prática, como também, na prática de seus educandos. A pesquisa é importante, pois nela se cria o estímulo e o respeito à capacidade criadora. Assim como no amor, o ato de pesquisar também não pode ser passivo, restringindo-se à reprodução simplista e incauta do que o outro diz. Neste caso, a pesquisa serve para produzir, reafirmar e ressignificar conceitos que consolidem uma prática de vida emancipadora.

A aula do professor protagonista não pode ser morna, suas teorias devem ser debatidas e deve também, de alguma maneira, preservar o velho, as formas tradicionais de educação, desde que estas não sirvam de repressão e negação do direito do outro.
Este professor condena qualquer manifestação de discriminação racial, política, religiosa, de classe social, entre outras. Para ele, a discrimanação é imoral e por mais que seja difícil, por mais que tentem fazê-lo declinar, ele reconhece a necessidade cotidiana de lutar contras estas forças, não somente em sua fala, mas principalmente em suas atitudes.

O professor protagonista ensina seus educandos que a luta do professor é uma luta de todos, pois na reivindicação pela dignidade de sua função, fica claro que a mesma não é só eticamente importante, como democraticamente necessária.

A prática protagonista não incita à população expoliada e sofrida que se rebele simplesmente, mas trata-se de desafiar os grupos populares para que percebam a violência e a profunda injustiça que caracterizam esta situação. Desta maneira, o ato educativo se processa como forma de intervir no mundo.

O professor protagonista é comprometido e generoso, leva a sério a sua formação, estuda, se aprimora e tem força moral para coordenar as atividades de sua classe. É um professor seguro de si, ao mesmo tempo é compreensivo de suas falhas como ser humano. Ele constrói e valoriza um clima de disciplina, sem jamais, minimizar a liberdade. Ele está certo de que a disciplina verdadeira não está na acomodação, mas na ação dos inquietos, na luta contínua de não se fazer acomodado mediante qualquer prática de discrimação e de injustiça.

IV- O HTPC, A GESTÃO ESCOLAR E O DOCENTE: CONFLITOS & CONSENSOS PARA A NECESSÁRIA DEMOCRACIA

O capítulo que segue tem como objetivo trazer elementos de minha prática como Coordenadora Pedagógica na perspectiva de discutir com os educadores da Educação de Jovens e Adultos (EJA), a importância do protagonismo docente na busca pela emancipação dos sujeitos no processo de ensino e aprendizagem.

Formados por um sistema de educação que mais valoriza a submissão que a emancipação dos sujeitos, os educadores nem sempre conseguem desenvolver um trabalho que enfatize a atuação protagonista de seu fazer em sala de aula. Foi observando dificuldades desta natureza que considerei relevante discutir nos Horários de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC) questões que tivessem como foco, o protagonismo docente no desenvolvimento do trabalho.

Antes de falar dos conteúdos discutidos nos HTPCs considera-se relevante trazer um pouco da história destes momentos coletivos no cenário educaconal.

Por muito tempo esteve na pauta das reivindicações dos professores e existência de um espaço remunerado onde se pudessem discutir os problemas da escola. Estas reivindicações começaram a tomar corpo somente em 1985, na ocasião, junto ao professores do Estado de São Paulo, quando foi oficialmente aprovado o Estatuto do Magistério.

No ano de 1990, quando foi aprovado o projeto Escola Padrão, foi ampliado o HTPC para os professores de todas as séries, mas era direcionado apenas aos participantes deste projeto. Somente em 1996 essa conquista contemplou os professores de todas as redes públicas de ensino (OLIVEIRA, 2006, p. 28).

Atualmente, o HTPC é obrigatório para todos os professores e tem duração de duas a três horas semanais, tendo como uma de suas principais características o caráter coletivo. O Estatuto do Magistério da rede municipal de ensino de São Bernardo do Campo defende que estes momentos devem, entre vários objetivos, possibilitar a reflexão sobre a prática docente e propiciar o aperfeiçoamento individual e coletivo dos educadores. Os mesmos devem ser planejados e coordenados pela Coordenadora Pedagógica (CP), sendo facultativa a presença do Diretor da Unidade Escolar, devendo este participar da elaboração das pautas junto à CP.

Os HTPCs da unidade escolar que serviu como base empírica para este trabalho se direcionam aos educadores que atendem a dois serviços na modalidade de Educação Jovens e Adultos: cursos livres e EJA I. Os cursos livres têm duração de duzentas horas (cerca de três meses) e são ministrados por educadores no intuito de profissionalizar em uma área específica. Os educandos que frequentam os cursos livres, em sua maioria, têm um perfil diferenciado dos da EJA regular, pois geralmente estão cursando ou já cursaram a escola regular. Procuram a unidade por diversos motivos: para se profissionalizar ou mesmo para “distrair a cabeça” como dizem alguns quando vão se matricular. Os educadores dos cursos livres são técnicos especialistas nas áreas que atuam.

Os educandos da EJA regular (Ensino Fundamental I) se diferenciam daqueles dos cursos livres no sentido de não ter tido acesso à escola na idade própria. Quanto ao grupo de professoras que atende a EJA regular, apesar de todas serem pedagogas, cada uma possui uma trajetória na educação e um jeito diferente de atuar. Cristina[2], Paula e Keila trabalham com educandos em situação de vulnerabilidade social que fazem parte do programa Oportunidades da Prefeitura de São Bernardo do Campo. Este programa permite que sejam trabalhadores metade do período e estudantes no outro. São chamados para trabalhar na limpeza de órgãos públicos da cidade ou cuidar da área verde. A maioria é oriunda da região nordeste e poucos são alfabetizados. Raquel e Fátima trabalham no Programa EJA Servidor. Seus educandos são servidores públicos que trabalham há muitos anos na Prefeitura. Muitos deles estão frequentando a escola pela primeira vez em suas vidas. No que diz respeito à forma de atuar em sala de aula, em relação à escolha das atividades, das cinco educadoras, três ainda tem dificuldades para trabalhar de forma mais contextualizada ou sob uma ótica emancipadora de educação. Às vezes trazem alguma temática importante, mas percebe-se a dificuldade de aprofundar este tema.  Cito por exemplo uma situação em que foi proposto aos educandos que verbalizassem por que não estudaram quando crianças. Relatos que evidenciavam a relação de “quase escravidão” sofrida pelos educandos deixaram a educadora surpresa e condoída, porém, poucos foram os desdobramentos explorados em sala de aula.

Pautando-se na concepção de Paulo Freire (2000), educar é um ato político, pois se assume um compromisso com o outro, para que este possa ser sujeito da sua história e do seu processo de aprendizagem.  Observando o modus operandi escolar sabe-se que não é simples nem fácil promover mudanças no interior da escola.

Segundo Viana (2008, p.3) a escola é uma organização na qual as relações se manifestam e são regularizadas burocraticamente, através da hierarquia funcional reforçada e mediada constantemente por um processo de dominação.  Transformar a prática educativa é uma questão que leva tempo, planejamento e estratégias bem definidas, pois é algo que está ligado a concepção de educação, e como dito acima, muito mais reforçada pela dominação que pela possibilidade de transformação social.

Caminhando na contramão da lógica da dominação, Paulo Freire defende que o educando é um dos eixos fundamentais de todo o processo educativo, portanto, precisa se conscientizar de que é um sujeito ativo, capaz de refletir criticamente sobre seu papel e sabedor das possibilidades de transformação do mundo em que vive.

Dentro do processo educativo, só é possível promover educandos críticos se os educadores também os são.  Foi pensando nesta perspectiva que aconteceram as discussões nos HPTCs, salientando com os educadores, a importância do planejamento antecipado das aulas e a necessidade deste planejamento estar atrelado a um projeto maior na EJA que é da emancipação social dos educandos. Adianta-se de antemão que estas discussões nunca estão isentas de conflitos.

Ao cursar a Especialização em Economia Solidária e Educação de Jovens e Adultos na Universidade Federal do ABC, foi bastante oportuna a possibilidade de relacionar os princípios da Economia Solidária com o currículo da EJA, até mesmo pela possibilidade que enseja de problematizar o mundo do trabalho e o sistema capitalista.

Com o objetivo de sensibilizar as professoras sobre as questões relacionadas ao mundo do trabalho, direcionamos alguns HTPCs[3] para tratar das relações do trabalho a partir das experiências das próprias educadoras. Considerava que problematizar o mundo do trabalho no sistema capitalista seria um bom caminho para o reconhecimento das injustiças sociais. Foi proposto que elas falassem sobre a profissão em três momentos de suas vidas: como foi quando iniciaram a carreira do magistério, como estão vivendo a docência no presente e quais expectativas elas têm em relação ao futuro. Uma catarse se instaurou naquela discussão. As queixas sobre as dificuldades encontradas no magistério foram muitas. Questões como desvalorização profissional e o baixo poder de compra apesar da elevada carga de trabalho foram mencionadas como fatores que trazem desânimo ao ato de educar. Fiquei preocupada com a relação que estavam estabelecendo com o trabalho naquele momento. Ao mesmo tempo reconhecia que eram queixas legítimas. É fato que o mundo capitalista promove o incessante desejo de ter, como se fosse possível comprar a felicidade. É fato também que limita esse poder a uma pequena parcela da população. Mesmo reconhecendo que as queixas eram legítimas, não podia deixar que a discussão acabasse ali. Comentei do patrimônio imaterial do magistério que é contribuir para a emancipação e transformação das pessoas e elas não discordaram, porém, pareciam céticas em relação a isto.

Em outro HTPC problematizamos as transformações que houveram no mundo do trabalho desde quando o Brasil foi colonizado. As educadoras apontaram questões bastante pertinentes como o sofrimento relegado aos negros na escravidão. Raquel mencionou uma situação que segundo ela lhe causava profunda indignação: a humilhação que os negros sofriam quando tinham que encher baldes de fezes humanas e despejar no mar. Parte destes dejetos caía em seus corpos deixando-os manchados, e assim eram ironicamente chamados de “homem-zebra”.

A fala de Raquel contribuiu para uma percepção de que o problema da desigualdade é antigo. Ainda hoje os afro-descendentes sofrem de discriminação e é muitas vezes a parcela mais pobre da população.  Na discussão eu procurava relacionar a vida de nossos educandos às situações semelhantes como a dos “homens-zebra”. Procurei destacar a importância da educação como um dos poucos mecanismos capazes de problematizar e transformar esta realidade, mesmo que difícil, mesmo que parecendo utópico. Nesta ocasião, Paula trouxe relatos dos educandos e salientava que um deles já havia passado por uma situação de escravidão numa carvoaria. Ele ganhava um real por dia e esse dinheiro ainda ficava com o dono do empreendimento que cobrava pelo alimento e pelo pouso.

Ainda em relação às transformações no mundo do trabalho Cristina destacou as mudanças sociais decorrentes do processo de industrialização no Brasil. Mencionou que no mundo contemporâneo a cidade cresce verticalizada e muita opressão sofremos decorrente das demandas do setor econômico. Destacou também o quanto somos privados de liberdade, de espaço e do acesso à água limpa dos rios. Percebi neste HTPC que as educadoras eram sensíveis à temática da justiça social. Apesar de mostrarem resistência quando eu indicava a importância destes fatores agregarem o currículo da EJA percebia uma luz no início do túnel quanto a indicação de alguma mudança na forma de atuar junto aos alunos.

Dando continuidade aos HTPCs, avaliei que tinha que direcionar a discussão para a solução de um problema mais antigo: o da necessidade do registro do planejamento das aulas.

Amparada pelos princípios da autogestão[4], que defende que as decisões devem ser tomadas de forma horizontal, considerei relevante levantar com as educadoras quais eram os problemas pedagógicos observados por elas e as soluções para superá-los. Considerava este um caminho que poderia ter mais sucesso considerando que soluções trazidas por mim em relação à entrega do registro do planejamento não estavam surtindo efeito.

Segui a discussão pedindo que levantassem quais os principais problemas da escola. Queixaram-se de uma circular interna que escrevi para que não deixassem de entregar o planejamento na data. Tinha resolvido ser mais direta nesta circular, considerando que tinha verbalizado por diversas vezes o problema e o mesmo ainda prevalecia. Ficou claro o incômodo delas em relação às cobranças.

O HTPC acabou saindo bem diferente do planejado. As professoras focaram a discussão nas cobranças e ficamos pouco tempo falando de outros problemas e como resolvê-los.

Comentei sobre o conceito da autogestão e a ligação deste com a responsabilidade individual e coletiva. Mencionei também que a falta da compreensão e de participação em questões importantes pode levar ao fato dos outros decidirem por nós.
Percebi naquele momento, a dificuldade do grupo em entender o sentido da autogestão, que não é fazer o que queremos. É preciso olhar e considerar o coletivo. Se uma pessoa dentro do contexto sai prejudicada não é a autogestão que está em jogo e sim à individualidade ou a força do mais forte. Assim como diz o documento Oficina de Formação em Educação em Economia Solidária, publicado pela Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) a autogestão incorpora a participação como estratégia fundante na valorização dos diversos saberes. Ela une e humaniza o que o capitalismo divide e desumaniza em suas hierarquias valorativas.

Olhando a partir de uma ótica mais distanciada é evidente que com a falta de planejamento quem perde em qualidade de ensino são os educandos, portanto, pela lógica, a prática deveria estar incorporada a prática docente. Como ainda persistia esta dificuldade em boa parte do grupo, achei que seria importante promover uma formação em HTPC que tratasse do tema, deste modo, propus que no próximo encontro, elas trouxessem textos que tratassem da importância do registro e do planejamento na prática pedagógica. Uma educadora contestou, pois disse que já dominava o assunto. Sua dissertação de mestrado tratou da mesma temática. Destaquei que o grupo ainda tinha a aprender sobre o assunto e que neste caso, era preciso olhar para a necessidade de todas. Aproveitei a oportunidade e pedi então, que ela me auxiliasse na formação do grupo, já que outrora havia se debruçado sobre o tema. Sendo assim, planejei um HTPC em que iríamos discutir textos teóricos que tratassem da importância do planejamento. A escolha destes textos partiria das próprias professoras e não de mim.

Começamos o HTPC com a pesquisa realizada pela professora Paula. O texto[5] pesquisado destacava algumas questões pertinentes em relação ao planejamento: esquecer a burocracia; conhecer bem os educandos; estabeler prioridades e eleger critérios; mencionava a necessidade de estudar muito para ensinar bem; de se colocar no lugar do educando; de se utilizar de diferentes métodos de trabalho; de conversar com as colegas e pedir ajuda quando necessário e por último destacava que era necessário escrever, escrever, escrever.

Achei interessante a escolha do texto de Paula, pois o mesmo dialogava com a nossa necessidade. Fiquei pensando que eu poderia ter mudado a estratégia e pedir que os princípios do planejamento partissem delas e apenas num segundo momento trazer a teoria. Creio que ao problematizar, as respostas sairiam do grupo, o que poderia ser mais significativo. Começamos a discussão e a educadora que eu tinha pedido para ajudar nesta formação destacou no grupo que existem várias nuances de planejamento, que é necessário ter foco e estes devem ter ligação com um projeto maior que é estar ligado a uma concepção. Foi para a lousa escreveu os caminhos necessários para um planejamento de qualidade. Ressaltou a necessidade da relação do planejamento com a concepção da Secretaria da Educação, com o PPP da escola, com o plano de curso da professora, com os projetos feitos segundo a caracterização da turma, da sequência didática de alguns conteúdos que precisam obedecer a níveis de complexidade para que os educandos aprendam. Deu exemplos de objetivos, conteúdos e encaminhamentos, enfim, uma série de aspectos que ligavam o conteúdo, à pertinência dele e o percurso para que fosse possível alcançá-lo.

A professora continuou a explanação falando sobre sequência didática e atividades permanentes como a leitura diária. Ressaltou que é no planejamento que o professor tem autonomia, que é ali que são autores de sua prática, quando percebem quais as necessidades dos educandos. Com o objetivo de socializar como realiza o seu planejamento foi até o seu caderno de registros e leu suas reflexões:

“Fiquei surpresa com o desenho que eles fizeram, preciso focar nas representações gráficas, pois as ilustrações são carentes de detalhes; o educando C. finalmente aprendeu expressões numéricas. Passei pela sala e percebi que na cabeça do A. tem micose, preciso tratar isso na aula de Ciências quando falar das doenças”.[C1][6]

Pedi que Raquel pausasse a leitura e comentei que o que ela estava fazendo era trazer vida para a sala de aula, que estava transformando as necessidades observadas em conteúdo. Keila pergunta se é isso que espero do grupo. Fico um pouco incomodada em dizer que sim, pois ao dar este tipo de resposta tenho receio delas enveredarem para a cópia do trabalho da outra, o que não é isso que espero. Disse que ela havia aprendido um caminho importante na gestão das aulas que é perceber as necessidades e transformar as mesmas em aulas.

Terminamos o HTPC, pois já havia dado o horário. Destaco que pra mim esta formação foi bem interessante. Uma experiência que trouxe valorização ao trabalho de Raquel que tem saber para passar ao grupo, assim, definimos quais seriam os passos para o próximo HTPC e pedi a elas que avaliassem a formação do dia:

Keila “foi bem elucidativo, clareou bastante”;[C2]

Cristina:“não foi um HTPC foi uma aula, agora entendo melhor o que você quer de nós”;[C3]

Paula: “foi muito bom, adorei, aprendi porque confundia plano de curso com plano de ação”; [C4];

Raquel destaca: “interessante, agora é preciso ir para a prática do planejamento.”[C5].

Pensando em meus objetivos, os resultados das discussões foram pertinentes, pois de alguma forma mobilizou o grupo a pensar mais sobre a prática do planejamento. Com esta formação ficou uma pergunta: é consenso que o planejamento é necessário? Pode ser que sim, mas é sabido que existe um bom caminho a percorrer e este demanda um projeto de formação que considere como chegar ao objetivo final que é a qualidade da educação na EJA. Isso nos faz refletir sob o significado do consenso nas decisões de um grupo.

Inegável a necessidade de problematizar o significado da palavra consenso quando o assunto se relaciona com a gestão de um grupo. Segundo Nogueira (2003, p.185), inúmeros conceitos da teoria social contemporânea geram controvérsias constantes. O de consenso é sem dúvida um destes:

“… elaborado para qualificar uma articulação pluralista de ideias e valores, uma unidade na diversidade, o conceito de consenso acaba por ser reduzido a ausência de dissenso e divergência, uma situação mais de silêncio passivo e unanimidade que de ruído e multiplicidade.” (id. ibdem)

O relato a seguir trata de dois HTPCs que ilustram o quanto o consenso pode vir acompanhado de diferentes interesses e opiniões. Às vezes ele também não se dá em uma única reunião, é preciso retomar e aparar as arestas que eventualmente ficaram pendentes. Estas reuniões foram realizadas com os educadores dos cursos livres quando a pauta se referia à definição de um novo horário para a realização do HTPC. O motivo do mesmo era porque havia sido contratada uma educadora que não poderia participar destas formações se não houvesse uma adequação de horário. A mesma trabalhava além da nossa, em mais duas escolas de redes diferentes.

Para esta nova definição era necessário que todos entrassem em um acordo, pois participar do HTPC é condição obrigatória podendo acarretar o ônus de ser desligado do trabalho quem do mesmo não pode participar. Vale lembrar que os educadores dos cursos livres não são estatutários, mas sim, contratados pelo convênio Centro de Educação, Estudos e Pesquisas (CEEP) e Prefeitura Municipal de São Bernardo do Campo (PMSBC). No momento da entrevista fica claro que participar do HTPC é condição sine quanon para assumir o emprego. Assim, para que a educadora continuasse compondo o grupo de educadores de cursos livres era necessário que encontrássemos uma forma de garantir um horário de HTPC que fosse comum para todos. Como o novo horário implicava em mudança, era preciso levar para discussão.

Levamos a pauta para o grupo quando foi ouvido de cada um, o posicionamento sobre a questão. Fagner dizia que não concordava com a mudança, pois a educadora tinha acabado de chegar e não era justo que todos mudassem de horário só por causa dela. Eu lhe perguntei se a mudança acarretaria algum prejuízo em sua vida, o que ele relatou que sim, pois isso implicaria em ter que “correr” para dar tempo de entrar no seu outro emprego. O próximo que falou foi João Augusto. Sua posição era que ele iria acatar o que a maioria do grupo decidisse. Leandro foi o terceiro que se posicionou dizendo que não teria problemas com a mudança de horário. Passamos para o próximo educador, o Álvaro, que foi terminantemente contra a mudança. Sua argumentação era que estava fazendo um curso profissionalizante e não queria sair trinta minutos do mesmo uma vez na semana para a realização da reunião coletiva. O curioso era que Álvaro colecionava um grande número de faltas nos HPTCs. Quando questionado o motivo das mesmas ele dizia que havia esquecido.

O que deveria ser discussão para se chegar a um consenso acabou tomando um rumo de votação em que o grupo como um todo se mostrava descontente com a mudança de horário. Nesse caso eu intervi e coloquei os pontos que considerava necessário. Questionei a validade da posição de Álvaro mediante tantas faltas nos HTPCs. Seria justo não fazer a mudança por causa dele que nem sequer era assíduo nas reuniões? Em relação à posição do educador que teria que “correr” para entrar no outro trabalho, coloquei que poderia dispensá-lo um pouco mais cedo para que não fosse prejudicado. Com estas ponderações achei que já estava resolvido o problema. Destaquei que a mudança de horário ocorreria. Percebi incômodo no grupo, mas não havia mais tempo para continuar a debatê-lo, dado que a hora já estava avançada. Além do tempo, minha disposição e a do grupo para continuar falando sobre o assunto já tinha sido esgotada.

Como sempre existem as conversas de bastidores, um dos educadores me procurou no dia seguinte dizendo que o grupo estava descontente com a decisão. Coloquei pra ele com detalhamento a necessidade de olharmos para a situação da colega. Considerando o contexto como um todo, era melhor que cada um cedesse um pouco ou que só uma pessoa saísse prejudicada? A colega era casada, tinha dois filhos e dependia do trabalho para ajudar nas despesas da casa. Esse educador acabou dizendo uma coisa que seria importante se tivesse falado no grupo quando estávamos discutindo. Ele disse que mediante todos os argumentos colocados, aquele do professor de perder trinta minutos semanais do curso profissionalizante não tinha validade nenhuma. O que era um curso de culinária mediante a possibilidade de uma pessoa perder o emprego? Concordo com ele, mas como evito falar de assuntos coletivos em espaços individuais, me posicionei dizendo que isso deveria ser falando mediante todos.

Achei necessário voltar ao assunto no próximo encontro com o grupo. Abri a questão novamente e um dos educadores disse que estava descontente com a decisão tomada. Esperei ele terminar de falar e retomei o que havia falado para o outro professor quanto à necessidade do grupo e a necessidade da professora. Confesso que não é simples gerir questões como essa, ainda mais quando sua pretensão é ponderar todos os lados procurando o melhor para todos. Não é simples porque cada um tem um ponto de vista e acha que o seu ponto é o que deve ser seguido. O professor que havia me procurado outrora pediu a palavra e disse: “-Pessoal, quero fazer uma pergunta: – Quem aqui é socialista? Apontou para cada um e perguntava: – Você é socialista? E você é socialista?” Os educadores, meio sem entender respondiam que sim ou ficavam mudos. Apenas um falou “não, sou comunista.” Daí ele completou: – “Eu sou socialista, então temos que parar de pensar só em nós e mudar o horário e acabou.” Achei quase engraçado, porque ele foi um socialista bem pontual, eu diria. Depois disso cada um falou sobre suas opiniões e as coisas tomaram um rumo diferente, pois estavam concordando agora com a mudança do horário. Retomei o assunto, reforçando a necessidade de considerarmos mais o coletivo e parece que o problema, deu-se por encerrado.

O incômodo da reunião anterior tinha sido bastante minimizado. Atribuo ao fato do diálogo ter sido reaberto para a digestão dos descontentamentos, ou talvez para um entendimento maior dos motivos que levavam a mudança em pauta. Confesso que como gestora não é simples fazer o discernimento de quando e como temos que agir em cada situação. O tempo escasso, as múltiplas tarefas, a complexidade das relações e as necessidades individuais são fatores que se não tomar cuidado levam a tomada de decisões rápidas e sem reflexão. O problema disso é não considerar as reais necessidades das pessoas. Em todo caso é comum que as relações passem por conflitos. Que não façamos destes vilões da história, na realidade se bem dosados podem ajudar a fortalecer e integrar as pessoas dentro do um grupo, mas para isso é preciso ter um projeto comum muito claro. No caso da Economia Solidária, o processo de tomada de decisões horizontalizadas tem um objetivo claro aos sujeitos que é fazer do trabalho uma forma de aprender, de crescer, de torná-lo mais humano, mais libertador, tornando as pessoas menos alienadas e mais responsáveis por si e pelo coletivo.

Monteiro (2012) ao apontar as variações sobre as situações de conflito e consenso defende que constitui um desafio sermos capazes de distinguir os campos em que temos consensos daqueles em que temos conflitos. Para ela, o conflito, tal como o consenso, não é bom nem mau, pois todas as sociedades são conflituais e são também, consensuais. Ela destaca um ponto relevante sobre a distinção destes dois termos: mediante qualquer situação em que a decisão deva ser tomada é presico diferenciar o que une e o que divide as pessoas.

Baseando-se nestas discussões, ponderamos que em relação aos HTPC, os conflitos foram importantes para reafirmar algumas questões como a importância dos planejamentos e a necessidade de olharmos para além de nossas próprias necessidades. Não posso dizer que estes dois conceitos foram acomodados pelo grupo, pois eles levam tempo para se efetivar. Mesmo assim, em relação ao planejamento tivemos melhoras significativas, mesmo porque outras ações foram realizadas em diversos outros momentos da rotina da escola. Sobre a sensibilidade da necessidade do outro é um desafio constante a ser trabalhado na rotina da escola.

V. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Produzir esta monografia foi importante porque pude problematizar por diversas vezes o meu próprio trabalho. Foi muito interessante participar de uma iniciativa acadêmica que de fato se preocupou em teorizar a prática tendo como pano de fundo conceitos importantes como aqueles trabalhados na Economia Solidária.

Ao conceituar historicamente a EJA e ao trazer elementos da Economia Solidária acabamos por reunir forças para a condução do trabalho de gestão da unidade escolar. Isso porque foi possível vislumbrar o que estava por trás da busca democrática também defendida na ECOSOL: uma sociedade menos excludente, mais respeitosa e sensível à necessidade do outro, do grupo.
Não há receitas a seguir, porém, os princípios da Economia Solidária trazem elementos importantes a se pensar numa outra escola.

Por meio da pesquisa-ação foi possível fazer um paralelo de como poderia ser o rumo dos encaminhamentos se eventualmente tivesse tido outras ações e não aquelas descritas nas práticas nos HTPC. Pude valorizar os conflitos como importantes fatores para a busca da tão sonhada democracia. A discussão no texto retratou a importância de ouvir os professores e de intervir quando as decisões eram enviesadas no sentido das defesas serem mais individualistas e menos coletivas.

Considero também que a democracia muitas vezes não é resolvida por votação. Tem situações em que se exige discussão para se chegar a um consenso e estes por sua vez nunca estão isento de conflitos.

O consenso se obtém por meio de diálogo e o professor protagonista precisa ter como ‘arma’ esta habilidade. Numa sociedade onde o imediatismo e o consumo são fatores de peso, saber dialogar significa que se superou os marcas prejudicais que o sistema capitalista deseja incutir nos sujeitos.

Enfim, não fecho, nem finalizo a questão da democracia ou do protagonismo docente na EJA. Fico com a sensação e com a necessidade de continuar buscando formas de se fazer valer estas questões na prática, mesmo porque como enfatizado por diversas vezez neste texto, a democracia, o consenso, a justiça, todas estas questões são dados que se produzem e se reforçam não em outro lugar que não seja aquele da luta coletiva.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de estado. Rio de Janeiro: edições Graal, 1985.
ANTUNES, R; ALVES, G. As mutações no mundo do trabalho na era da mundialização do capital. Educação e Sociedade, vol.25, n.87, p. 335-351, maio/ago, 2004.
ARAÚJO, U, F. Assembleia escolar: um caminho para a resolução de conflitos. São Paulo: Moderna, 2004.
BOURDIEU, P. Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998.
BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Secretária Nacional de Economia Solidária. I Oficina Nacional de Formação/ Educação em Economia Solidária. Brasília, 2006, 47 páginas.
COSTA, A.C.G. Protagonismo Juvenil: Adolescência, Educação e Participação Democrática. Salvador: Fundação Odebrecht, 2000.
CUNHA, M, C. Introdução- discutindo conceitos básicos. In: SEED- MEC Salto para o futuro- Educação de Jovens e Adultos. Brasília, 1999.
DEWEY, J. Liberalismo, liberdade e Cultura. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1970.
FEFFERMANN, M. Vidas Arriscadas: o cotidiano dos jovens trabalhadores do tráfico. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.
FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
FOUCAULT, M. A Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2001.
LAPASSADE, G. Grupos, organizações e instituições. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983.
LECRERC, E, F, G. Dissensos no consenso: a democratização da escola pública em Mato Grosso. Educação e Sociedade. Campinas, vol. 25, n. 89, p. 1409-1412, Set./Dez. 2004.
MANCE, A, E. Constelação Solidarius: as fendas do capitalismo e sua superação sistêmica. Passo Fundo: IFIBE, 2008.
MONTEIRO, S. Conflito e consenso. Le Monde Diplomatique, Portugal, março, 2012. Disponível em <pt.mondediplo.com/spip.php?page=sommaire.>. Acesso em 24 março 2012.
MULLER, J. M. O princípio de não-violência. Lisboa:Instituto Piaget, 1995.
NOGUEIRA, A, M. Sociedade civil, entre o político-estatal e o universo gerencial. Revista Brasileira de Ciências Sociais, volume 18, nº 52, 185-202, junho/2003.
OLIVEIRA, R, A, N. O HTPC como espaço de formação: uma possibilidade. 2006. 113 f.. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), São Paulo.
PARO, V. H. Educação como exercício do poder. São Paulo: Cortez, 2008.
__________. Gestão Democrática da escola pública. São Paulo: Ática, 2002.
PICHON-RIVIÈRE, E. O processo grupal. Trad. Marco Aurélio Fernandes. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
PUIG, J. Democracia e participação escolar. São Paulo: Moderna, 2000.
SERAPIONI, M; ROMANI, O. Potencialidades e desafios da participação em instâncias colegiadas dos sistemas de saúde: os casos de Itália, Inglaterra e Brasil. Caderno de Saúde Pública. Rio de Janeiro, 2411-2421, nov. 2006.
Silva, G. A (di) gestão do risco nuclear na França: o caso das Comissões Locais de Informação. 441-470, 2007.
SINGER, H. Quando a educação é Invenção Democrática de pesquisa-ação, 2009.
SINGER, P. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2002.
SOARES, L, J, G. A educação de jovens e adultos: momentos históricos e desafios atuais. Revista Presença Pedagógica, v. 02, nº 11, Dimensão, set/out 1996.
_______________. O surgimento dos Fóruns de EJA no Brasil: articular, socializar e intervir. In: RAAAB, alfabetização e Cidadania- políticas públicas de EJA. Revista de EJA, nº 17, maio de 2004.
THIOLLENT, M. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez, 1986.
VIANA, N. Manifesto autogestionário. Rio de Janeiro: Achiamé, 2008.

  1. [1]Cada HTPC tem a duração de duas horas e ocorrem semanalmente.
  2. [2] Para preservar a identidade dos participantes, todos os nomes são fictícios.
  3. [3]Este HTPC foi realizado com o grupo da EJA regular que só tem professoras, por isso, os termos serão utilizados no gênero feminino.
  4. [4]Autogestão é um dos princípios utilizados na Economia Solidária. Na autogestão as decisões são tomadas coletivamente de forma horizontal, diferente da heterogestão quando é quem está no topo da hierarquia que decide.a
  5. [5] texto retirado do site na pesquisa feita em 20/10/11
  6. [6] [C1] Corresponde ao termo “comentário 1”; [C2], comentário 2 e assim, sucessivamente.