Educação, Trabalho e Economia Solidária: diálogos possíveis na EJA

Autor: José Rodrigues Ferreira Junior
Orientadoras: Vera Barreto e Andrea Barreto

 

AGRADECIMENTOS

Agradeço minha família pelo apoio dado na conclusão deste trabalho.
Giane – Esposa
Pâmela – Filha
Neto – Filho

 

SUMÁRIO

  • 1.INTRODUÇÃO
  • 2. EJA: ENTRE O FUTURO APRISIONADOR E A CONSTRUÇÃO DA PRÁTICA LIBERTÁRIA
    2.1 O contexto do CIEJA Butantã: buscando a construção da escola de jovens e adultos
    2.1.1 Apresentação do CIEJA na rede Municipal de São Paulo
    2.1.2 Educação e Trabalho no CIEJA Butantã: entre a regulação capitalista e a imprescindibilidade de outra concepção de educação
    2.2 O perfil dos estudantes do CIEJA Butantã em 2011
  • 3. EJA E ECONOMIA SOLIDÁRIA
  • 4. APROFUNDAMENTO TEMÁTICO 2: EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E TRABALHO
  • 5. SABERES CONSTRUÍDOS E DEMANDADOS PELO TRABALHO NO CRSANS
    5.1 CRSANS Butantã: breve histórico
    5.2 Relato do entrevistador e apresentação da entrevista
    5.3 Algumas considerações sobre a entrevista realizada
  • 6. ANÁLISE DA PESQUISA COM MULHERES DO PROJETO CIEJA NA RUA
  • 7. PERSPECTIVAS PARA O DIÁLOGO ENTRE ESCOLARIZAÇÃO E ECONOMIA SOLIDÁRIA
  • REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

CORA CORALINA, QUEM É VOCÊ?
Sou mulher como outra qualquer.
Venho do século passado
e trago comigo todas as idades.
Nasci numa rebaixa de serra
Entre serras e morros.
“Longe de todos os lugares”.
Numa cidade de onde levaram
o ouro e deixaram as pedras.
Junto a estas decorreram
a minha infância e adolescência.
Aos meus anseios respondiam
as escarpas agrestes.
E eu fechada dentro
da imensa serrania
que se azulava na distância
longínqua.
Numa ânsia de vida eu abria
O vôo nas asas impossíveis
do sonho.
Venho do século passado.
Pertenço a uma geração
ponte, entre a libertação
dos escravos e o trabalhador livre.
Entre a monarquia caída e a república
que se instalava.
Todo o ranço do passado era presente.
A brutalidade, a incompreensão, a ignorância, o carrancismo.
Os castigos corporais.
Nas casas. Nas escolas.
Nos quartéis e nas roças.
A criança não tinha vez,
Os adultos eram sádicos
aplicavam castigos humilhantes.
Tive uma velha mestra que já
havia ensinado uma geração
antes da minha.
Os métodos de ensino eram
antiquados e aprendi as letras
em livros superados de que
ninguém mais fala.
Nunca os algarismos me
entraram no entendimento.
De certo pela pobreza que marcaria
Para sempre minha vida.
Precisei pouco dos números.
Sendo eu mais doméstica do
que intelectual,
não escrevo jamais de forma
consciente e racionada, e sim
impelida por um impulso incontrolável.
Sendo assim, tenho a
consciência de ser autêntica.
Nasci para escrever, mas, o meio,
o tempo, as criaturas e fatores
outros, contra-marcaram minha vida.
Sou mais doceira e cozinheira
Do que escritora, sendo a culinária
a mais nobre de todas as Artes:
objetiva, concreta, jamais abstrata
a que está ligada à vida e
à saúde humana.
Nunca recebi estímulos familiares para ser literata.
Sempre houve na família, senão uma
hostilidade, pelo menos uma reserva determinada
a essa minha tendência inata.
Talvez, por tudo isso e muito mais,
sinta dentro de mim, no fundo dos meus
reservatórios secretos, um vago desejo de analfabetismo.
Sobrevivi, me recompondo aos
bocados, à dura compreensão dos
rígidos preconceitos do passado.
Preconceitos de classe.
Preconceitos de cor e de família.
Preconceitos econômicos.
Férreos preconceitos sociais.
A escola da vida me suplementou
as deficiências da escola primária
que outras o destino não me deu.
Foi assim que cheguei a este livro
Sem referências a mencionar.
Nenhum primeiro prêmio.
Nenhum segundo lugar.
Nem Menção Honrosa.
Nenhuma Láurea.
Apenas a autenticidade da minha
poesia arrancada aos pedaços
do fundo da minha sensibilidade,
e este anseio:
procuro superar todos os dias
Minha própria personalidade
renovada,
despedaçando dentro de mim
tudo que é velho e morto.
Luta, a palavra vibrante
que levanta os fracos
e determina os fortes.
Quem sentirá a Vida
destas páginas…
Gerações que hão de vir
de gerações que vão nascer.

 

 

1. INTRODUÇÃO

(Vanessa Elsas e José Rodrigues Ferreira Junior)

Durante o curso de especialização EJA e Economia Solidária, oferecido pela Universidade Federal do ABC em convênio com o ITCP USP, diferentes profissionais da educação foram incentivados a refletir sobre as intencionalidades assumidas pelo trabalho educativo na sociedade capitalista e a vislumbrar outra organização social possível – aquela ancorada na Economia Solidária.

Esse trabalho de conclusão do curso visa apresentar as pesquisas, reflexões e práticas educativas desenvolvidas ao bojo de uma intencionalidade diversa da educação: pautada na participação popular na construção de outras relações econômicas e sociais.

Nossa intenção era (re)conhecer  relações possíveis de serem feitas entre a educação popular no empreendimento social e na escola pública, a partir da percepção, mobilização e vivência dos trabalhadores jovens e adultos.

Observamos, desde o início de nosso trabalho, que a educação popular é fundamental para o desenvolvimento da economia solidária, na construção, consolidação e disseminação de seus princípios e valores não só junto aos empreendimentos solidários, mas também às instituições oficiais de ensino.

Partimos do pressuposto de que as práticas educativas, fundamentadas no princípio democrático da Economia Solidária, não poderiam se realizar sem o reconhecimento e ampliação dos sentidos da aprendizagem para os educandos e nem se afastar da participação dos mesmos de sua formulação.

Desse modo, procuramos analisar os sentidos da escolarização e as demandas de aprendizado das trabalhadoras do empreendimento solidário Centro de Referência de Segurança Alimentar do Butantã (CRSANS BT) dos alunos do Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos (CIEJA BT), buscando coloca-los em diálogo.

Para tanto, realizamos visitas ao CRSANS para realização de entrevistas com as trabalhadoras e troca de experiência entre elas e os alunos do CIEJA BT, possibilitando que os últimos pudessem entrar em contato também com outra alternativa de organização do trabalho.

2. EJA: entre o futuro aprisionador e a construção da prática libertária

(Vanessa Elsas e José Rodrigues Ferreira Junior)

A Educação de jovens e adultos é, antes de tudo, um direito social, consolidado entre os Direitos Humanos no artigo XXVI:

“Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais”.  Nesse sentido, a EJA deveria ser oferecida não como prática compensatória ou assistencialista, mas de modo que atendesse às condições e necessidades dos educandos, assim como determina a  Lei de Diretrizes e Bases 9.394/96 (LDB/96):

Art. 37. A educação de jovens e adultos será destinada àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental e médio na idade própria. § 1º Os sistemas de ensino assegurarão gratuitamente aos jovens e aos adultos, que não puderam efetuar os estudos na idade regular, oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as características do alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho, mediante cursos e exames.

Reconhecer as especificidades dessa modalidade de ensino implicaria em discutir quais seriam as “oportunidades educacionais apropriadas” para oferta da EJA e mesmo em relação às quais intencionalidades educativas elas seriam ou não “apropriadas”. Ao mesmo tempo, devemos nos questionar em que medida essa consideração das especificidades inerentes aos jovens e adultos, de fato, influencia as práticas educativas para essa parcela da população.

Verifica-se que a noção dessa “apropriação” pode atrelar-se à ideologia hegemônica na sociedade; a depender das ideias em que se amparam as propostas para EJA, nos deparamos com a realização do ensino enquanto instrumento de reprodução da ordenação social existente ou de intervenção e transformação da mesma.

Além de procurar fixar seu modo de sociabilidade através de instituições determinadas, os homens produzem ideias ou representações pelas quais procuram explicar e compreender sua própria vida individual, social, suas relações com a natureza e com o sobrenatural. Essas ideias ou representações, no entanto, tenderão a esconder dos homens o modo real como suas relações sociais foram produzidas e a origem das formas sociais de exploração econômica e de dominação política. Esse ocultamento da realidade social chama-se ideologia. Por seu intermédio, os homens legitimam as condições sociais de exploração e de dominação, fazendo com que pareçam verdadeiras e justas. Enfim, também é um aspecto fundamental da existência histórica dos homens a ação pela qual podem ou reproduzir as relações sociais existentes, ou transformá-las, seja de maneira radical (quando fazem uma revolução), seja de maneira parcial (quando fazem reformas). (CHAUÍ,1980, p.8-9) (Grifo nosso)

A ideologia neoliberal, que permeia a oferta de EJA nas escolas públicas do país, parece, então, esconder “a origem das formas sociais de exploração econômica e de dominação política” das classes populares. A escolarização fundamentada no centro dessa ideologia é capaz de, a um só tempo, diferenciar e isolar os homens e mulheres das classes populares, os responsabilizar pelas precariedades que vivenciam e os embalar numa promessa vazia de futuro com igualdade.

Nesse sentido, de acordo com a intencionalidade e o projeto de sociedade com que é engendrada a EJA, podemos encontrar práticas de ensino mergulhadas na vivência e expectativas dos jovens e adultos, ou totalmente alheias a elas, conferindo ao povo um papel pré-determinado na história e no desenvolvimento do país.

2.1 O contexto do CIEJA Butantã: buscando a construção da escola de jovens e adultos
(Vanessa Elsas e José Rodrigues Ferreira Junior)

2.1.1 Apresentação do CIEJA na rede Municipal de São Paulo

O Projeto CIEJA é uma daquelas propostas de ensino que, inspirada no pensamento e prática educativa de Paulo Freire, pretendem transcender tempos, espaços e currículos marcados pelos interesses capitalistas na “educação bancária” para fomentar a educação popular e participação dos homens e mulheres na construção da sociedade. Nesse sentido que os ideais da Economia Solidária vêm ao encontro dos princípios do projeto para formação dos jovens e adultos.

Os CIEJAs tiveram origem no governo de Marta Suplicy (2001-2005) quando foram avaliados e reformulados os Centros Municipais de Ensino Supletivo (CEMES). Os CEMES, por sua vez, foram idealizados durante o governo de Luiza Erundina (1989-1993), período em que Paulo Freire era Secretário de Ensino do município de São Paulo.

Os CIEJAs ofertam a EJA de forma diferenciada dentro da rede municipal, possui Ensino Fundamental nos ciclos I e II, correspondente aos anos de primeira a oitava séria. Visa oferecer melhores condições de acesso e permanência dos jovens e adultos na escola. O curso oferecido é presencial e organizado em quatro módulos com duração de um ano cada; o currículo integra três áreas do conhecimento: Linguagens e Códigos, Ciências Humanas e Ciências da Natureza e Matemática. Além disso, o CIEJA BT oferece Itinerários Formativos em Informática que assume o caráter de formação profissional, aliando a escolarização ao mundo do trabalho.

As aulas, presenciais e obrigatórias, possuem 2h30 de duração, são distribuídas nos períodos matutino, vespertino e noturno, o que facilita a conciliação dos estudantes com as condições particulares de trabalho e responsabilidades familiares. Os estudantes podem frequentar também as Orientações de Estudo para tirar dúvidas, aprofundar-se em algum tema, desenvolver ou participar de algum projeto diferenciado, ampliando ou compondo a carga horária.

Os horários de estudo flexíveis podem facilitar o acesso e permanência dos jovens e adultos na escola. No CIEJA Butantã a equipe técnica é composta pela Coordenadora Geral e Assistente de Coordenação, Orientadoras Pedagógicas Educacionais, Professores [1] e Funcionários da rede municipal, que são designados para os cargos que ocupam nos Centros. Com a designação, foi possível fixar por mais tempo seu quadro de profissionais, bem como integrá-lo com educadores cuja prática se aproximam dos princípios do projeto. Essa fixação do quadro de profissionais da equipe também propicia a construção coletiva das ações pedagógicas, sua avaliação, transformação ou manutenção ao longo dos anos.

2.1.2 Educação e Trabalho no CIEJA Butantã: entre a regulação capitalista e a imprescindibilidade de outra concepção de educação
(José Rodrigues Ferreira Junior)

Nos CIEJAs, desde sua formação, vivenciam-se impasses entre as propostas de inovação da EJA e concepções educativas amparadas na lógica capitalista. Como parte da Rede Municipal de Ensino, os CIEJAs transitam, assim entre a busca pelo desenvolvimento da autonomia dos alunos e as regulações institucionais inconstantes, que podem variar de acordo com os interesses daqueles que assumem o governo.

O CIEJA BT mantêm em sua proposta pedagógica dois eixos norteadores das ações educativas: mundo do trabalho e mundo da cultura, que sempre pareceram indissociáveis à sua Equipe Pedagógica.

No entanto, colocá-los em dois eixos possibilitou interpretações diversas entre as diferentes gestões municipais, que nem sempre foram coerentes com suas propostas de trabalho. Destacamos que na transição dos CEMES para CIEJA foi estabelecido convênio com o sistema S na busca de “qualificar o trabalhador” de acordo com o perfil levantado nas unidades no período de avaliação dos CEMES. No entanto, ao longo dessa primeira experiência, constatou-se que não era possível separar a ação educativa no Ensino Fundamental de uma formação para trabalho, elas necessitavam ser, mais do que complementares, efetivamente integradas.

Nesse início do Projeto CIEJA, a educação de jovens e adultos, ainda que inspirada nos ideais de educação e participação popular, parecia carecer de maior reflexão sobre a relação da escolarização e o mundo do trabalho, de maneira que a proposta de qualificação profissional acabara sendo concebida sob a lógica de formação para o trabalho no sistema capitalista.

Os cursos que ofereciam a qualificação profissional do Senac não mantinham diálogo com os educadores dos Centros e eram conduzidos por técnicos que instruíam os alunos em cursos de Telefonia, Atendente e Recepcionistas, Operador de Telemarketing, entre outros. Eram, em geral, cursos que certificavam os estudantes para atuarem no mercado de trabalho nos empregos com menor “status” e rentabilidade. Assim, já a oferta dos cursos deixava claro o conceito educacional e intencionalidades lançados para essa modalidade, destoantes daqueles objetivos formulados no projeto originalmente.

Muitos conflitos aconteceram nesse período, justamente, porque em muitos CIEJAs a concepção educacional para os jovens e adultos era diferente daquele modelo porposto, como no caso do CIEJA BT. Aos professores e gestores parecia que educação de jovens e adultos deveria se constituir como prática emancipadora e promover mecanismos de conscientização em relação ao mundo do trabalho, para que os alunos pudessem conceber outra forma de atuarem na sociedade além daquelas ofertadas pelos interesses capitalistas.

O convênio com o sistema S foi, anos mais tarde, finalmente avaliado como insuficiente e desarticulado dos princípios do projeto CIEJA e não foi renovado, ficando o eixo “mundo do trabalho” sob a responsabilidade dos próprios centros.

Se por um lado isso propiciou a rearticulação dos dois eixos nos CIEJAs, sendo cada qual integrante fundamental na formação dos alunos, por outro ainda foram instituídos Itinerários Formativos, em maioria de Informática, como forma de suprir a qualificação profissional, reduzindo-a a única possibilidade de integrar educação e trabalho. Os educadores do Centro receberam, então, formação da Diretoria de Orientações Técnicas de EJA (DOT/EJA), também em parceria com a PRODAM para atualização profissional e redesenho dos Itinerários Formativos.

Consideramos que essa transição, embora bastante positiva por devolver aos educadores a responsabilidade de formação integral dos alunos, ainda carecia de uma concepção teórica mais ampla e de nova prática sobre a formação do trabalhador, que não representasse o reducionismo do currículo ou Itinerários Formativos à instrumentação da informática e nem à reprodução das aulas tradicionais na sala de informática.

Dessa forma, durante alguns anos, foi discutida a relação entre os dois eixos, Educação e Trabalho, no currículo e privilegiadas as práticas que articulavam a vivência dos estudantes aos conhecimentos historicamente acumulados, sem diretamente prepará-los para ocupar determinadas vagas de emprego, mas buscando a sua conscientização sobre as condições dos trabalhadores na sociedade e refletindo-se sobre o trabalho enquanto produção cultural dos homens.

O curso de especialização EJA e Economia Solidária possibilitou reavivar as discussões e vislumbrar uma forma diversa de atender a essa demanda de articulação entre Educação e Trabalho, com maior alinhamento conceitual entre a Economia Solidária e os princípios do CIEJA.
Com o curso, passou-se a perceber que todas as áreas de conhecimento oferecem aprendizados sobre conteúdos fundamentais na formação dos trabalhadores, não os concebendo apenas como mão-de-obra, mas como produtores de cultura, trabalhadores que reconhecem traços de coletividade, podem articulá-los em empreendimentos solidários e, ao mesmo tempo, serem sujeitos mais autônomos e menos excluídos.

Assim, pôde-se voltar a almejar a realização da educação popular, que não se reduz ao controle e coesão social para o enriquecimento econômico de poucos, mas que se constitui enquanto prática libertária e promotora do desenvolvimento humano. É desse diálogo profícuo, que acreditamos ser possível emergir uma outra proposta de EJA, que mergulhe na realidade dos estudantes sem condená-los a um futuro “pré-dado” a eles, mas construindo com eles outro tempo presente.

2.2 O perfil dos estudantes do CIEJA Butantã em 2011
(Vanessa Elsas e José Rodrigues Ferreira Junior)

No início do ano, realizou-se uma pesquisa entre os estudantes do CIEJA Butantã em que constatamos que grande parte deles são jovens e adultos trabalhadores.

A maioria trabalha no setor de serviços e mora na Zona Oeste da cidade de São Paulo, como podemos verificar nos gráficos seguintes.

 

Os alunos que chegam ao CIEJA são migrantes ou filhos de migrantes da região Nordeste ou do Estado de Minas Gerais, que interromperam os estudos por necessitarem trabalhar desde cedo e não conseguirem acesso ou condições de permanecer na escola.
Esses estudantes, quando questionados sobre os motivos que os levaram a procurar o CIEJA não raro mencionam que enxergam na escola uma condição para “melhorar de vida” ou “ter uma oportunidade melhor no emprego”. Há também, sobretudo entre as mulheres, aqueles alunos que mencionam o retorno à escola como satisfação de um desejo pessoal.

Atualmente, o CIEJA BT possui 6 turmas em cada um dos 6 horários de atendimento nos períodos da manhã, tarde e noite. De cada 6 turmas de um horário, 2 são de ciclo I: alfabetização e pós-alfabetização. As turmas possuem em média 15 alunos e verificamos que os módulos de alfabetização e pós-alfabetização possuem predominância de adultos e idosos.

Durante o ano, constatamos que os estudantes passam por diversos desafios para continuarem estudando, muitas vezes, porque suas condições de trabalho e moradia são inconstantes e sofrem mudanças bruscas que impactam na organização de seus tempos para o estudo. Nesse sentido, a organização do CIEJA com diferentes alternativas para assistir às aulas e participar das atividades pode facilitar muito a permanência dos estudantes na escola a despeito das dificuldades de ordens diversas que eles enfrentam.
3. EJA e Economia Solidária
(Vanessa Elsas e José Rodrigues Ferreira Junior)

 


Olho porque o mundo não tem igualdade. Por que a gente não tem coragem de falar como eles? Por que a gente não tinha autoridade? Por que o povo mais humilde não tinha a oportunidade de falar como alta sociedade?

A EJA tem sido concebida nas instituições escolares muito mais como conformadora das relações sociais, como responsável pela “civilidade” dos sujeitos ou por sua “domesticação”, que propriamente como centro potencial para reorganização da convivência entre grupos, para a reflexão sobre seus valores, para a crítica e inovação de técnicas, para a reconfiguração social.

 

A escola constituiu-se ao longo de séculos como um centro opressor dos costumes e valores destoantes do “desejável” ou “aceitável” para uma pequena parcela da sociedade, ao invés de ser palco em que as tensões entre a elite e a massa pudessem encontrar meios de se transformar em relações menos desiguais.

Desse modo, o que se observa da escola atual em modelos variados no mundo e mais especificamente no Brasil – tão ignorada e sucateada- é seu papel de submeter a formação humana aos interesses econômicos dos detentores dos meios de produção, louvar o individualismo para calar o grito das massas.

Quando se assume uma postura crítica frente às relações de troca construídas historicamente, percebe-se que na era do capitalismo, o valor do ser humano está reduzido ao quanto valemos, em dinheiro, diante de um sistema que nos aliena, nos afasta do outro e de nós mesmos, a ponto de não nos incomodarmos em perder o sono, o sonho, a dignidade. É a falta do dinheiro e “status” conferidos por algumas profissões que retira a autoridade dos homens e mulheres, os impede de falar, de denunciar a desigualdade vivida e buscar superá-la.

Homens e mulheres vendem, dia após dia, muito mais que seu tempo ou força de trabalho. Na sociedade capitalista, eles têm vendido a convivência com quem lhes é caro, a autonomia e a liberdade. São máximas de nosso tempo que a culpa por sua “falta de autoridade” é toda sua, que não conseguiram embarcar no trem do desenvolvimentismo econômico por pura incompetência, ou seja, pela falta de estudo. Estudo a que não tiveram acesso ou não puderam frequentar quando estavam trabalhando, que nada de seu lhes comunicava ou anunciava. Não estudaram o suficiente, não se esforçaram o suficiente, não inovaram a velha roda o suficiente, nem assumiram a “responsabilidade” ou “papel histórico” que lhes atribuíram.

A ideologia da competição chama atenção apenas para os vencedores, a sina dos perdedores fica na penumbra. O que acontece com os empresários e empregados das empresas que quebram? E com os pretendentes que não conseguem emprego? Ou com os vestibulandos que não entram na universidade? Em tese, devem continuar tentando competir, para ver se saem melhor da próxima vez. Mas, na economia capitalista os ganhadores acumulam vantagens, os perdedores acumulam desvantagens nas competições futuras. (SINGER, 2002, p. 8)

Nesse sentido, cabe à educação de jovens e adultos (EJA), antes que reforçar essa “ideologia da competição” forjada, configurar um lugar em que essa ilusão seja desfeita. A EJA deve ser, portanto, o lugar do encontro e não da consolidação de posições, o lugar da palavra viva, da autonomia, da discussão, do estranhamento, do resgate daquelas vozes tantas vezes acostumadas a costumes que nunca lhes pertenceram. A EJA, enquanto educação popular, é um campo em que se pode, coletivamente, conceber o valor do ser humano enquanto sujeito histórico.
A EJA tomada dessa intencionalidade transformadora possui saberes e experiências acumuladas na Educação Popular, tal como concebida por Paulo Freire nos anos de 1960, bem como na Economia Solidária, tal como concebida por Paul Singer, que vislumbra uma organização econômica popular, voltada para os interesses e condições do povo e não à manutenção de uma elite no poder.

A Economia Solidária é também educativa para quem há muito naturalizou a violência da exploração cotidiana. Ao reavaliar e criticar o modo como se concebe o “valor” de troca contido nas relações de trabalho capitalista, o valor assumido pelo ser humano frente ao lucro, ao projetar outra organização econômica possível, a economia solidária pode resgatar aquele estranhamento essencial para mudança.

A economia Solidária pretende, justamente, desmontar o ocultamento “daquelas relações de exploração e dominação dos homens” na ideologia capitalista, revelar atrás da aparencia “justa e verdadeira” de sua lógica, a desigual e falsa promessa de um futuro a que nem todos pertencerão, mas sobreviverão apenas à margem.

Reconhecendo, então, como cerne da desigualdade, a posse dos meios de produção por poucos, a competividade das relações econômicas, a concentração dos lucros nas mãos de uma minoria, a submissão das instituições sociais aos interesses do capitalista, a Economia Solidária propõe o desvelamento e transfomarção das bases da exploração do homem sobre o homem, devolvendo a ele a possibilidade de retomar a palavra, a autonomia, a posse dos meios de sua própria sobrevivência, de construir outra organização social.

O que importa entender é que a desigualdade não é natural e a competição generalizada tampouco o é. Elas resultam da forma como se organizam as atividades econômicas e que se denomina modo de produção. O capitalismo é um modo de produção cujos princípios são o direito de propriedade individual aplicado ao capital eo direito à liberdde individual. A aplicação destes princípios divide a sociedade em duas classes básicas: a classe proprietária ou possuidora do capital e a classe que (por não dispor de capital) ganha a vida mediante a venda de sua força de trabalho à outra classe. O resultado natural é a competição e a desigualdade. A economia solidária é outro modo de produção, cujos princípios básicos são a propriedade coletiva ou associada do capital e o direito à liberdade individual. A aplicação desses princípios une todos os que produzem numa única classe de trabalhadores que sãopossuidores de capital por igual em cada cooperativa ou sociedade econômica. O resultado natural é a solidariedade e a igualdade, cuja reproduação, no entanto, exige mecanismos estatais de redistribuição solidária da renda. (SINGER, 2002, p. 10)

 

Fundada no princípio da solidariedade, da cooperação entre os homens e entre as classes, o projeto para sociedade da Economia Solidária não apenas é pautada na idealização do futuro, mas na ação dos homens e mulheres do tempo presente. Mais do que reconhecer a origem da desigualdade e compreender as marcas que carregam dela, as classes populares, assim como as elites, são postas na posição daquelas pessoas cuja liberdade não se submete à propriedade ou a um futuro pré-concebido, mas constroem, a partir da intervenção no mundo presente, outras relações sociais.

A economia solidária ratifica, então, a solidariedade não como o assistencialismo, mas como a cooperação, a primeira palavra se origina de uma postura passiva “assistir”, a segunda de uma postura ativa cooperar. Além disso a operação não será de poucos, de uma elite para o povo, mas sim uma atitude que implica o com, o fazer junto. É nesse sentido que a economia solidária ao mesmo tempo em que concebe o indivíduo em seu lugar de autor, reconhece a autoridade não apenas da “alta sociedade”, mas também dos “humildes”, desfazendo a desigualdade de suas posições.

Assim, abre-se espaço para que a realidade seja constituída pela junção e não justaposição de intencionalidades na sociedade democrática, em que assim como Paul Singer (2002) escreve “Ninguém manda em ninguém”, do mesmo modo como Paulo Freire (1987) também anunciava que “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo. Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho; os homens se libertam em comunhão”.
4. APROFUNDAMENTO TEMÁTICO 2: EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E TRABALHO
(José Rodrigues Ferreira Junior)

A educação de jovens e adultos tem merecido, como vimos, especial atenção por parte das indústrias e empresas diversas como potencial instrumento para formação de mão-de-obra. No entanto, verifica-se também esse interesse por parte das entidades sindicais, cuja força tem sido direcionada no sentido de apresentar novas perspectivas a esse trabalhador com pouca ou quase nenhuma compreensão de seus direitos.

As ações educativas decorrentes desse compromisso assumido pelos sindicatos buscam, com um discurso que incorpora elementos do ideário liberal e neoliberal, a elevação da escolaridade e a formação profissional para a obtenção de empregos dignos e melhoria das condições de vida, também embalando-se pelas promessas da ideologia capitalista para o futuro. É o que podemos observar a seguir em dois trechos da cartilha distribuída pelo Programa Integração da CUT (Central Única dos Trabalhadores) em que se enfatiza a importância da educação:

Tem que se investir na educação dos trabalhadores para eles acompanharem as mudanças que estão acontecendo nas fábricas e nas empresas (…) com os programas de formação da CUT, os trabalhadores podem até conquistar o certificado de primeiro e os de segundo grau. (CUT/Integração, 2000, p.2-4)

 

A atuação e propostas educativas dos sindicatos, portanto, continuam posicionando os trabalhadores em um lugar em que são “carregados por forças que não dominam” (Mills, 1976) e ao mesmo tempo procura sua acomodação na sociedade cada vez mais incorporando o “individualismo” e ideais da “competitividade” e cada vez menos reconhecendo seus traços comuns, sua condição coletiva, sua luta de classes.

A globalização de nosso tempo, em que o mundo se divide entre aqueles que vivem para consumir e os que não conseguem consumir o mínimo para viver, como apresentado no filme “Encontro com Milton Santos ou O mundo global visto do lado de cá[2], ratifica um processo de precarização das relações de trabalho com perdas relevantes dos direitos sociais, bem como com o aumento do desemprego.

A relação supostamente óbvia e direta entre o aumento do nível de escolaridade e a garantia de ocupação no mercado de trabalho formal não é observada na realidade dos países subdesenvolvidos como o Brasil. Além dessa relação constituir uma farsa, oculta que o acesso ao mercado de trabalho, aos melhores salários e às garantias trabalhistas são também desiguais devido à diversidade étnica, de gênero e de idade, que historicamente têm apartado o povo da elite dominante.

Relacionar a educação de jovens e adultos ao trabalho, no entanto, é inevitável, pois não só ela responde aos anseios dos estudantes que retornam à escola para aumentar sua chance de inclusão social, como viabiliza sua inserção no mercado com mais facilidade. Além disso, a educação mais do que um fim em si mesma, como menciona Liliana Segnini, cumpre o papel de legar a cultura e possibilitar que o homem a renove e reinvente o mundo através do trabalho.

Há de se questionar, no entanto, que relação com o trabalho a EJA deve estabelecer: aquela de preparação para a ocupação precária no mundo globalizado e desigual ou outra, em que seja possível conceber o trabalho não apenas como valor de troca, mas enquanto pilar da construção do sujeito que poderá transformar a realidade.

A economia solidária apresenta-se como um caminho possível para abandonar esse impasse que, muitas vezes, nem ao menos chega a ser considerado. Através de outro olhar para as relações de trabalho e para as formas de desenvolvimento econômico, um olhar permeado do ideal de participação democrática, em que o valor da sustentabilidade é sobreposto ao valor do lucro. Assim, a EJA pode encontrar um lugar de construção social diferenciado, distante de uma política macroeconômica alienante e cruel.

Segundo o modelo de desenvolvimento econômico do Brasil, historicamente não só os indivíduos são marcados por sua condição econômica como também sua condição econômica é marcada por desigualdades e preconceitos: de gênero, etnia, idade, origem. Ao observarmos, por exemplo, que enquanto a região sul e o sudeste encontram a prosperidade devido aos grandes investimentos na área econômica, política e social, as regiões mais castigadas pelo clima e pela distância dos grandes centros condenam sua população a engrossar o grupo de migrantes em busca da própria sobrevivência, submetendo-se à condições de trabalho e moradia precárias na cidade.

Também é possível constatar que entre a população mais pobre, mesmo para aqueles que conseguem manter seus postos no mercado de trabalho é preciso criar outras estratégias de trabalho que garantam a sua subsistência. É nesse momento que a Economia Solidária vem se destacar entre as demais estratégias para composição da renda, quando propõe não mais a subsistência individual, mas a gestão coletiva dos meios de produção, em que os homens e mulheres deixam de competir pela sobrevivência ou acomodação no sistema capitalista para cooperarem na construção de outro sistema de produção: mais justo, plural e solidário.

A crise do trabalho assalariado, na emergência do desemprego estrutural, abre, portanto, um campo para as atividades coletivas cunhem nova condição de trabalho produtivo. Ao pensarmos na EJA, devemos ter em mente sua história. Houve um tempo em que educar era sinônimo de alfabetizar. Então surgiram as contribuições de Paulo Freire que sabiamente demonstrou a necessidade de se possibilidade ao adulto a interação com o mundo em que vive, valorizando suas raízes e considerando a realidade política, econômica e social do momento presente.
Aprendia-se, portanto, que a leitura das palavras não era só a decodificar letras e algarismos, mas a descoberta dos sentidos e lutas que elas encobriam, proceder à leitura do mundo no qual se está inserido.

Desse mesmo modo, a educação não era mais mera reprodução de valores e costumes, nem somente instrumento de “transmitir” cultura. A própria cultura deveria ser tomada enquanto construção humana. Desse modo, assim como os homens não eram receptores apenas das disposições de sua época, também não poderiam ser apenas receptores de cultura. Eram eles próprios a um só tempo condicionados e condicionadores do mundo, receptores e produtores de conhecimento e de cultura.

Assim pareciam entender as diferentes inciativas educativas de cunhos progressistas, como o Movimento de Cultura Popular do Recife (MCP, 1960):

A visão do mundo do MCP não é a de produção de bens culturais para posterior doação ao povo. Pelo contrário, a participação do povo no processo de elaboração da cultura é fundamental para os pernambucanos. (MCP, doc. mimeog apud GÓES, 1985)

 

As práticas educativas de Paulo Freire na experiência de Angicos, no Rio Grande do Norte, também apontam a importância dos educandos perceberem o homem enquanto ser que intervém no mundo natural através do trabalho, assim, ao transformando o mundo o homem era também construtor de Cultura. Seguem-se abaixo imagens do Manual do Monitor da experiência de Angicos, em que isso é explicitado exemplarmente:

Do material didático do “método de alfabetização”, sistematizado em 1962/1963 por Paulo Freire. Fonte: Fórum EJA Brasil.http://www.flickr.com/photos/59760939@N07/sets/72157626356915821/

Desse modo é que o trabalho retoma sua dimensão cultural e deve, portanto, ser compreendido como condição do homem viver no mundo e com o mundo. Considerar essa dimensão do trabalho é reconhecer a autoria de homens e mulheres, é reconhecer, portanto, a necessidade de que não se alienem do sistema de produção e nem somente se acomodem a ele, tal como verificamos em meio à sociedade capitalista moderna.

A economia solidária propõe essa retomada dos trabalhadores enquanto sujeitos autônomos que constroem e reconstroem o mundo, fazem cultura. É nesse sentido, que pode então constituir-se uma nova forma de produção: aquela fundada não na alienação do trabalhador sobre seu fazer, mas em sua consciência sobre ele; aquela fundada não na concentração dos meios de produção em poucas mãos, mas na posse coletiva deles; fundada não na heterogestão, mas na autogestão.

Reconhece-se, assim, a necessidade de que o trabalho possa ser baseado em outro projeto para sociedade, do qual as camadas populares participem ativamente como sujeitos de sua própria história, bem como, a EJA que se pretende libertária.

 

5. SABERES CONSTRUÍDOS E DEMANDADOS PELO TRABALHO NO CRSANS
(José Rodrigues Ferreira Junior)

Nossa proposta desde o início era investigar o papel da educação popular nas iniciativas de Economia Solidária e práticas escolares. Pretendíamos analisar a possibilidade de que os jovens e adultos atuassem nesses locais de forma a reconhecer e transformar sua própria condição, de que pudessem se perceber como produtores de cultura e não fossem meros receptores de um projeto de futuro, mas construtores de um tempo presente menos desigual.

Desse modo, procuramos aproximar nossa busca do empreendimento solidário CRSANS na crença de que a vivência das trabalhadoras pudesse ter influenciado sua forma de conceber a si mesmas e ao mundo, bem como pudesse ter construido conhecimentos diversos sobre o trabalho e, ainda, levantado outras demandas de aprendizados. Assim é que realizamos a entrevista seguinte com as tarabalhadoras do empreendimento, buscando vincular sua prática no trabalho dos aprendizados construídos e experiências de escolarização.

5.1 CRSANS Butantã: breve histórico

O CRSANS (Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável) é o primeiro centro de referência sobre SAN do município de São Paulo, resultado da articulação de diversos parceiros da sociedade civil, comunidade local e poder público que compõem uma rede local de SAN.

Com um caráter interdisciplinar, tem a proposta de ser um centro irradiador de atividades e discussões sobre segurança alimentar, economia solidária, agricultura urbana e meio ambiente.

Objetivo

 

O objetivo é incentivar a manipulação e o consumo adequado dos alimentos, valorizando o significado cultural e social das refeições. As ações ocorrem com a participação da comunidade e de entidades locais. Já estão em desenvolvimento oficinas de aproveitamento integral dos alimentos, cursos sobre cultivo de hortaliças, atividades de conscientização ambiental, atrações culturais e esportivas. A idéia é que os conceitos e as técnicas relacionados ao cultivo de alimentos saudáveis e de nutrição sejam multiplicados pelos próprios moradores da região.

Estrutura

O CRSANS está instalado numa área de 430 m² e teve investimento de R$ 353 mil. Abriga uma biblioteca e sala de vídeo, uma horta-escola, uma cozinha-escola, salas multiuso e um telecentro. “Este é o 360º telecentro que a Prefeitura inaugura, naquele que é o maior programa de inclusão digital público do mundo”, explicou o secretário Municipal de Participação e Parceria. O equipamento conta com 20 computadores disponíveis diariamente, tanto para cursos quanto para o uso livre.

 http://www.guiabutanta.com/obutanta/crsans-no-butanta.htm

5.2 Relato do entrevistador e apresentação da entrevista

Depois de duas visitas para conhecer o empreendimento e as pessoas que participam dele, entrevistei duas das três integrantes do grupo, que têm entre 54 e 62 anos e que chamaremos de V. e M. para respeitar sua privacidade.

Cheguei no momento em que as mulheres estavam fechando a contabilidade da semana anterior. Notei que elas tinham certa dificuldade nessa atividade, por não terem um domínio da matemática. M. parecia bastante desconfortável com a contabilidade, falava pouco e observava mais as outras pessoas enquanto elas faziam as contas e comentavam os resultados. Muitas vezes as mulheres erravam nas contas e tinham que reiniciar todo o processo.

A minha visita havia sido agendada na semana anterior, mas quando cheguei para a entrevista percebi que faria parte daquele momento de trabalho. As mulheres continuaram a fazer as contas enquanto o eu observava e era apresentado pela coordenadora Anadir, integrante da incubadora do ITCP USP, que apoia o empreendimento.

Aguardei até as mulheres finalizarem a contabilidade e fecharem o caixa para iniciar um “bate-papo”. Pretendia que a entrevista ocorresse de maneira mais espontânea o possível. Eu me apresentei: expliquei que estava fazendo um trabalho para a Universidade Federal do ABC e era professor de educação de jovens e adultos no CIEJA Butantã. Em seguida, fiz-lhes algumas perguntas sobre se poderia realizar a entrevista e as cumprimentei. Após os cumprimentos iniciais, perguntei sobre o grau de escolaridade que tinham e sobre o local onde tinham estudado.

V. respondeu que fez o primeiro grau na Escola Municipal Roberto Mange e o segundo grau no Colégio Almeida Júnior, ambas próximos do empreendimento e na mesma região do CIEJA BT. V. Esclareceu que fez o EJA porque não estava na idade considerada apropriada para estudar, que veio do nordeste e que lá não pôde estudar.

M. respondeu que estudou no interior de São Paulo, na cidade de Sumaré, não concluindo o ensino Fundamental I. “Não terminei a terceira série”. Neste momento, perguntei se ela gostaria de terminar essa etapa de ensino. Ela respondeu que não tinha mais idade para voltar a estudar. Disse-lhe que há várias escolas onde pessoas de diversas idades estudam, explicando, inclusive, que se ela estudasse no CIEJA Butantã, dependendo do horário e da turma, ela poderia até estar entre os mais jovens. Mesmo assim, ela parecia irredutível e não demonstrava interesse em continuar a discutir o assunto, “não quero em voltar a estudar” e com essa frase parecia não querer mais ouvir falar dessa possibilidade.

Questionei se havia a oferta de formação naquele trabalho e de que tipo ela seria. V. colocou que a formação oferecida no CRSANS BT era “para trabalhar nas ações sociais, como a Pastoral da Criança na Igreja São Mateus”. Quando questionadas sobre o que gostariam de aprender para auxiliar no trabalho, ela disse qye gostaria de adquirir “conhecimentos de enfermagem para trabalhar nessa área”.

M. respondeu que quem a ajuda na formação são os filhos, os netos, as capacitações no grupo CRSANS no Butantã, fornecida pela ITCP USP, “e também a vida”. Neste momento, sua voz destacou bem a formação do ITCP USP. “Não voltei a estudar por não ter mais condições de trabalho por já estar numa idade avançada”. Esclareceu que na Pastoral da Criança em São Mateus ela também recebe formação.

As perguntas que direcionava para elas, procurando investigar quais conhecimentos associavam ao trabalho no CRSANS ou seriam necessários para melhorar o trabalho que realizavam eram respondidas em relação às suas expectativas de obter outro trabalho, ou melhor, de obter um emprego. Parecia que as mulheres relaicionavam seu fazer no empreendimento mais como uma “ação social” do que propriamente com uma forma de trabalho. Os conhecimentos adquiridos no empreendimento também parecia associarem-se mais à sua atuação e participação na comunidade que na prática do trabalho.

Fiz então um convite para que as participantes do CRSANS fossem visitar o CIEJA Butantã, para falar um pouco sobre as suas atividades e experiências na Economia Solidária.

M. ficou bastante relutante porque “tem que falar em público”. No entanto, V. se prontificou em participar e levar sua experiência para outros locais.

As mulheres mostraram as planilhas que utilizam para fazer a contabilidade, que contém, basicamente, o número de barrinhas separadas por sabores (codificados) e também separadas por entrada, venda e sobra. Após apresentarem os instrumentos da contabilidade, retomaram as contas. Bastante ocupadas que estavam, não procurei alongar mais aquela conversa.

 

5.3 Algumas considerações sobre a entrevista realizada

Através dessa entrevista breve, pudemos sentir os problemas enfrentados quando se tem pouca experiência para gerenciar uma empresa e quando se necessita de um apoio externo que muitas vezes não existe. Reconhecemos a coragem das pessoas que buscam a mudança. Mesmo com as dificuldades, a persistência é digna de elogios.

No entanto, ainda que vivenciassem a dificuldade de realizar alguns cálculos, notamos que as mulheres não chegaram a reconhecer essa necessidade de formação para melhoria de seu trabalho. Da mesma forma, não pareciam reconhecer na atividade que desempenhavam um trabalho, mas uma “ação social”.

Ao mesmo tempo, constatamos que a falta de formação das mulheres pode ser um entreva para a autogestão do empreendimento, formação não apenas escolar, mas também a respeito de suas atividades naquele empreendimento.

Acreditamos que há a necessidade de se divulgar na economia solidária os caminhos para uma formação adequada dos seus participantes de modo a trazer as soluções para a manutenção e o crescimento desses novos empreendimentos. Seria preciso que as atividades das mulheres fossem reconhecidas a um só tempo enquanto ação social de sentido transformador e enquanto trabalho.

Essa divulgação viria das organizações estruturadas para esse fim, mas também poderia surgir das próprias mulheres por meio da educação popular: reconhecer o seu território e identidade, planejar a ação e intervir na realidade.

Desse modo é que também aqui, esperemos que esse seja o fim do começo, e não o começo do fim da formação das participantes do CRSANS, que sua vivência possa conduzi-las a religar o sentido da ação social ao trabalho, uma vez que o trabalho é produção cultural, é interventor na criação e recriação do mundo.

6. Análise da Pesquisa com mulheres do Projeto CIEJA na RUA
(José Rodrigues ferreira Junior)

A pesquisa com as mulheres (alunas) do CIEJA teve a intenção de traçar um perfil destas mulheres para poder entender quem é esta mulher que esta voltando a estudar, como ela se apresenta e quais são seus anseios e suas necessidades, dentro desta perspectiva foi constatado que a maior parte das alunas do CIEJA é ou já foram casadas que a maior parte delas tem filhos, e tem idade entre 26 e 59 anos, onde a fonte de renda é do salário, não sendo um rendimento muito alto, onde a maior parte da renda da mulher e dos outros familiares fica entre R$ 545,00 e R$ 1.100,00, que costuma ocupar seu tempo com os trabalhos domésticos e cuidando dos filhos, onde a maior dificuldade para voltar a estudar estava no tempo e com os filhos, mais quando voltou a estudar não pensa em parar mais, pois para elas com os estudos podem conseguir um trabalho ou manter o que já tem e também por realização pessoal e para educar melhor os filhos, com a volta aos estudos às relações pessoais teve uma mudança positiva significativa, principalmente com relação aos filhos e ao marido ou companheiro, foi percebido com a pesquisa que todas as mulheres não têm a intenção de parar de estudar.

Segue abaixo a pesquisa efetuada com as mulheres do projeto CIEJA na RUA.

PRÁTICA PEDAGÓGICA:  Perfil das mulheres do CIEJA

 

 

7. PERSPECTIVAS PARA O DIÁLOGO ENTRE ESCOLARIZAÇÃO E ECONOMIA SOLIDÁRIA
(José Rodrigues Ferreira Junior)

Analisando o perfil das mulheres do Centro de Referencia em Segurança alimentar e Nutricional Sustentável e do Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos, percebi que são muitas parecidas, no aspecto que não tiveram oportunidade de efetuarem os seus estudos no tempo correto da escolarização e com isto enfrentam muitas dificuldades para se inserirem no mercado de trabalho formal, e na visão delas concebem a escolarização como forma de entrada no mercado de trabalho, tanto uma das participantes do CRSANS tem o objetivo de ser enfermeira e a outra acredita que já esta fazendo sua ação social, não vendo a fabricação das barras de sereias como trabalho e renda e sim como uma ação social.

As alunas do CIEJA dentro do projeto CIEJA na RUA foram conhecer o Centro de Referencia em segurança Alimentar e nutricional sustentável e viram como possibilidade de ganho ou aumento de renda as atividades praticadas no Centro, visto que no Centro alem da produção das barras de cereais tem outras atividades como a agricultura urbana, onde é efetuado o plantio das verduras e legumes dentro de calhas suspensas produzidas com telhas.

Hoje as mulheres estão buscando uma escolarização devido a demanda no mercado de trabalho que esta exigindo cada vez mais uma formação escolar melhor e fica claro na entrevista efetuada com as mulheres que atuam no Centro de Referencia Alimentar, onde para se inserir no mercado formal de trabalho tenha a necessidade de efetuar os estudos, visto que o objetivo de uma delas é ser enfermeira e a outra acredita que sua ação social efetuada na Igreja seja suficiente não tendo a necessidade de escolarização.

Foi solicitada uma visita das mulheres do CRSANS no CIEJA, para explicar como funciona a produção e distribuição das barras de sereias que estamos no aguardo.

Ao analisar a entrevista com as mulheres no CRSANS e os resultados do projeto CIEJA na Rua, observei que as experiências têm se somado. Conclui que a educação popular pode promover a integração dos seres humanos ao seu tempo de maneira que ele reconheça seu lugar e intervenha nele, seja através dos momentos de pesquisa, reflexão, debates, seja nos estudos do meio e na coleta de materiais, ou ainda, na conscientização do papel que cada um desempenha nas instituições sociais.

Através do questionamento sobre a própria realidade, chegamos a conclusões importantes e decisivas não mais nos acomordarmos no mundo, mas para mudarmos nossas vidas. Nas trocas de conhecimentos possíveis de serem realizadas entre as escolas e os empreendimentos sociais, ganham o professor e o aluno, ganham o trabalhadores autogestionários, bem como aqueles se dispoem a dialogar com eles.

Cada um reescreverá a sua história a partir da reconstrução do olhar sobre o conhecido e o desconhecido. Nunca se sabe tudo. Nunca se sabe o bastante. Há desafios importantes de serem considerados nesse diálogo, como os entraves oferecidos pela ideologia capitalista, que ao mesmo tempo regula e comprime os empreendimentos solidários com a força do mercado competitivo e dominam ideologicamente a concepção de EJA e suas práticas nas escolas.

O documento final da I Oficina de Formação de Formadores em Economia Solidária reuniu em cinco eixos temáticos algumas proposições, dificuldades e encaminhamentos que apontam para esses entraves.

Sejam as práticas, de que trata o documento, observadas na perspectiva micro ou macrossocial, quando falam da formação em empreendimentos solidários ou de políticas públicas, por exemplo, o documento parece marcar, justamente, a imprescindibilidade de que elas possam ser configuradas na interface entre o particular e o coletivo. Dessa maneira, os valores, projetos e ações podem se concretizar pela participação de todos.

Parece ser, propriamente, esse trabalho de mediar os saberes e experiências do particular e do coletivo, do indivíduo com o ambiente, o papel da educação, seja ela nos empreendimentos solidários ou em instituições de ensino.

No entanto, destaca-se na elaboração desse documento a implicação de que o projeto educativo não seja construído como qualquer espécie de manual ou receita, nem que se vincule a concepções ou práticas verticalizadas do processo de ensino-aprendizagem.

A formação em economia solidária, tal qual parece delinear o documento, não pretende se formular como projeto de poucos para a grande massa, nem corresponder ao ideal de formação de pequenos grupos. Ela transcende, portanto, o caráter coercivo atribuído, muitas vezes, às práticas educativas escolares que impõem valores, padrões de linguagem ou comportamentos aos sujeitos, ao invés de permitir que eles possam confrontá-los com os seus próprios e construir algo novo, algo que se configure como conhecimento apropriado ao invés de transferido.

Nesse sentido, é importante considerar alguns pontos levantados no documento e em nossa experiência no CRSANS para a configuração de um projeto de formação que propõe dar voz à experiência individual ou de um grupo, observar suas especificidades nos modos de conhecer ou operar no espaço social, ou seja, que se constitui como educação democrática. Destacamos algumas delas abaixo:

Contribuições

  • “As iniciativas de formação analisadas indicam a necessidade de utilizar uma linguagem que seja clara e objetiva para todos, como no exemplo citado com a presença de glossarista, que esclarece sobre o significado das palavras dentro do grupo.
  • Flexibilidade nos conteúdos da formação abrindo a contribuição coletiva do conhecimento, como técnicas de grupo e tendo como base a experiência completa dos envolvidos. Percurso formativo desencadeado a partir da realidade do empreendedor, tendo a prática como ponto de partida do processo, e o resgate das histórias de vida como impulsionadora da formação.
  • Desenvolver potencialidades de cada participante independentemente da escolaridade.

Limites e Dificuldades

  • Baixa escolaridade dos empreendedores e dificuldades dos formadores em utilizar outras técnicas (mais ilustrativas nos materiais didáticos).
  • A dificuldade de superação da cultura da subordinação que limita os processos formativos autogestionários. A cultura dominante dificulta a autogestão já que as pessoas estão acostumadas com lógicas diferentes da Economia Solidária (patrão/propriedade privada).
  • É preciso considerar o aspecto da subjetividade e o tempo de cada um dos trabalhadores.

Os apontamentos do quadro, compilados no documento analisado, trouxeram à tona, contribuições e dificuldades das práticas formativas em empreendimentos solidários que também estão nas unidades escolares e outros espaços de formação. Trata-se, justamente, da pretensão de que a formação seja, de fato, configurada pelos sujeitos envolvidos e não sobreposta a eles.

Isso não significaria abandoná-los à própria visão de mundo ou limitá-los aos saberes que já possuem, significa que o aprendizado pode ser constituído pelo diálogo, pelo interesse em saber mais, pela vinculação do sujeito ao objeto de estudo, por sua mobilização.

A educação de jovens e adultos nas escolas públicas também parece carecer dessa travessia entre o individual e coletivo, principalmente nas práticas que tendem a conceber o sujeito, sobretudo o analfabeto, como alguém desprovido de competência para exercer sua cidadania; cidadania aqui entendida como ato de conhecer, defender seus direitos civis, não apenas de se conformar diante de deveres.

Talvez seja por isso que o documento aponta também a dificuldade de dialogar com sistemas formais de ensino, parece que a “escolarização” das camadas populares tem sido impregnada pela necessidade de conformar os sujeitos ao mercado de trabalho, às mudanças econômicas e políticas do país, ao invés de formá-los enquanto cidadãos.

Nesse sentido é que a educação popular transcende os desafios observados no documento, que tão bem refletem aqueles encontrados no empreendimento visitado CRSANS. Nossa experimentação no CIEJA BT e nossa tentativa de construir uma prática inspirada na educação popular, com os trabalhadores estudantes e não para eles, pode contribuir, então, para vislumbrarmos no diálogo entre a realidade percebida e aquela desejada, possibilidades de intervenção.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FREIRE, P. Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra,. 1987.
______.; GUTTIERREZ, F. (orgs.). Educação Comunitária. Economia Popular. São Paulo: Cortez, 1999.
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SEGNINI, L. R. P. Educação e trabalho: uma relação tão necessária quanto insuficiente. São Paulo Perspec., Jun 2000, vol.14, no.2, p.72-81.
SINGER, P. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002.
TIRIBA, L. et al. O Lugar da Economia Solidária na Educação e o Lugar da Educação na Economia Solidária. In: MELLO, S. L. et al. Economia Solidária e Autogestão: Encontros Internacionais . São Paulo: 2007. p. 153-164.
______. Educação popular e pedagogia(s) da produção associada. Cad. CEDES, Abr 2007, vol.27, no.71, p.85-98

Sites
Blog CIEJA na Rede
Fórum EJA Brasil
Fórum Brasileiro de Economia Solidária

  1. [1]Os professores são selecionados para trabalharem no CIEJA através de processo seletivo interno à rede municipal.
  2. [2] Documentário de Silvio Tendler, 2007.