Ficha Síntese da Prática Pedagógica
Objetivos da Prática Pedagógica:
– Promover a discussão sobre as transformações do mundo do trabalho com as professoras da EJA;
-Levantar e encontrar soluções para os problemas vivenciados na escola.
Característica do grupo a quem foi aplicada a prática:
Grupo de cinco professoras que atuam junto a EJA, Ensino Fundamental I, sendo todas pedagogas. A maioria com pouca experiência na modalidade EJA. Três estão há mais de cinco anos na rede e duas atuam há pouco mais de dois anos.
Dinâmica de trabalho adotada na prática pedagógica:
Discussão ocorrida em Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC). O grupo sentou em círculo e primeiro foram feitas problematizações pela Coordenadora Pedagógica sobre os temas trabalhados. O objetivo consistia em sensibilizar e motivar o grupo a participar da discussão.
Recursos necessários para aplicação:
Lápis, caneta, folha de sulfite, oralidade.
Breve currículo do autor da prática pedagógica:
Isabel Cristina Rodrigues, pedagoga, mestre em educação pela USP; professora na rede pública municipal de ensino de Santo André e Coordenadora Pedagógica de uma escola de Ensino Profissionalizante em São Bernardo do Campo; membro da direção da Escola de Governo de São Paulo.
RELATOS DE EXPERIÊNCIA 1
“Autogestão é decisão de caminhos, não é isolamento”.
(Gonçalo Guimarães)
Estes relatos têm por objetivo trazer elementos de minha prática como Coordenadora Pedagógica na perspectiva de discutir com os educadores da Educação de Jovens e Adultos (EJA), a importância do protagonismo docente na busca pela emancipação dos sujeitos no processo de ensino-aprendizagem.
A palavra protagonismo é formada de duas raízes gregas: proto, que significa: “o primeiro, o principal” e agon, que significa “luta”. Agonistes, por sua vez, significa “lutador”. Protagonista quer dizer, então, o lutador principal, personagem principal, ator principal, ou mesmo agente de uma ação, seja ele um ente da sociedade civil ou do Estado, uma pessoa, um grupo, uma instituição ou um movimento social (COSTA, 2000, p.150).
Formados por um sistema de educação que mais valoriza a submissão que a emancipação dos sujeitos, os educadores nem sempre conseguem desenvolver um trabalho que enfatize a atuação protagonista de seu fazer em sala de aula. Foi observando dificuldades desta natureza que considerei relevante discutir nos Horários de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC) questões que tivessem como foco, o protagonismo docente no desenvolvimento do trabalho pedagógico.
Atuo como Coordenadora Pedagógica em uma escola de EJA em São Bernardo do Campo. Temos nove turmas no total, as quais são divididas entre cursos profissionalizantes e cursos de EJA regular. Os relatos aqui desenvolvidos dizem respeito a um trabalho de formação desenvolvido com cinco educadoras que ministram aulas na EJA regular (Ensino Fundamental I).
Apesar do grupo da EJA regular ser pequeno e ter apenas cinco educadoras[1] é bem diverso em si. Cada uma possui uma trajetória na educação e um jeito diferente de atuar. Cristina, Paula e Keila trabalham com educandos em situação de vulnerabilidade social que fazem parte do programa Oportunidades da Prefeitura de São Bernardo do Campo. Este programa permite que sejam trabalhadores metade do período e estudantes no outro. São chamados para trabalhar na limpeza de órgãos públicos da cidade ou cuidar da área verde. A maioria é oriunda da região nordeste e poucos são alfabetizados. Raquel e Fátima trabalham no Programa EJA Servidor. Seus educandos são servidores públicos que trabalham há muitos anos na Prefeitura. Muitos deles estão frequentando a escola pela primeira vez em suas vidas.
No que diz respeito à forma de atuar em sala de aula, em relação à escolha das atividades, das cinco educadoras, três ainda tem dificuldades para trabalhar de forma mais contextualizada ou sob uma ótica emancipadora de educação. Às vezes trazem alguma temática importante, mas percebe-se a dificuldade de aprofundar este tema. Cito por exemplo uma situação em que foi proposto aos educandos que verbalizassem por que não estudaram quando crianças. Relatos que evidenciavam a relação de “quase escravidão” sofrida pelos educandos deixaram a educadora surpresa e condoída, porém, poucos foram os desdobramentos explorados em sala de aula.
Pautando-se na concepção de Paulo Freire (2000), educar é um ato político, pois se assume um compromisso com o outro, para que este possa ser sujeito da sua história e do seu processo de aprendizagem. Observando o modus operandi escolar sabe-se que não é simples nem fácil promover mudanças no interior da escola.
Segundo Viana (2008, p.3) a escola é uma organização na qual as relações se manifestam e são regularizadas burocraticamente, através da hierarquia funcional reforçada e mediada constantemente por um processo de dominação. Transformar a prática educativa é uma questão que leva tempo, planejamento e estratégias bem definidas, pois é algo que está ligado a concepção de educação, e como dito acima, muito mais reforçada pela dominação que pela possibilidade de transformação social.
Caminhando na contramão do exposto acima, Paulo Freire defende que o educando é um dos eixos fundamentais de todo o processo educativo, portanto, precisa se conscientizar de que é um sujeito ativo, capaz de refletir criticamente sobre seu papel e sabedor das possibilidades de transformação do mundo em que vive.
Dentro do processo educativo, só é possível promover educandos críticos se os educadores também o são. Foi pensando nesta perspectiva que direcionamos a discussão nos HPTC, salientando com as educadoras, a importância do planejamento antecipado das aulas e a necessidade deste planejamento estar atrelado a um projeto maior na EJA que é da emancipação social dos educandos.
Ao cursar a pós em Economia Solidária e Educação de Jovens e Adultos na Universidade Federal do ABC, considerei bastante oportuna a possibilidade de relacionar os princípios da Economia Solidária com o currículo da EJA, até mesmo pela possibilidade que enseja de problematizar o mundo do trabalho e o sistema capitalista.
Com o objetivo de ilustrar a necessidade da discussão sobre o mundo do trabalho com os educandos, direcionamos alguns HTPCs para tratar das relações do trabalho a partir das experiências das próprias educadoras. Considerei que problematizar o mundo do trabalho no sistema capitalista seria um bom caminho para o reconhecimento das injustiças sociais. Propomos que elas falassem sobre a profissão em três momentos de suas vidas: como foi quando iniciaram a carreira do magistério, como estão vivendo a docência no presente e quais expectativas elas têm em relação ao futuro. Uma catarse se instaurou naquela discussão. As queixas sobre as dificuldades encontradas no magistério foram muitas. Questões como desvalorização profissional e o baixo poder de compra apesar da elevada carga de trabalho foram mencionadas como fatores que trazem desânimo ao ato de educar. Fiquei preocupada com a relação que estavam estabelecendo com o trabalho naquele momento. Ao mesmo tempo reconhecia que eram queixas legítimas. É fato que o mundo capitalista promove o incessante desejo de ter, como se fosse possível comprar a felicidade. É fato também que limita esse poder a uma pequena parcela da população. Mesmo reconhecendo que as queixas eram legítimas, não podia deixar que a discussão acabasse ali. Comentei do patrimônio imaterial do magistério que é contribuir para a emancipação e transformação das pessoas e elas não discordaram, porém, pareciam meio céticas em relação a isto.
Em outro HTPC problematizamos as transformações que houve no mundo do trabalho desde quando o Brasil foi colonizado. As educadoras apontaram questões bastante pertinentes como o sofrimento relegado aos negros na escravidão. Raquel desenhou uma situação que segundo ela lhe causava profunda indignação: a humilhação que os negros sofriam quando tinham que encher baldes de fezes humanas e despejar no mar. Parte destes dejetos caía em seus corpos deixando-os manchados, e assim eram ironicamente chamados de “homem-zebra”.
A fala de Raquel contribuiu para uma percepção de que o problema da desigualdade é antigo. Ainda hoje os afro-descendentes sofrem de discriminação e é muitas vezes a parcela mais pobre da população. Na discussão eu procurava relacionar a vida de nossos educandos às situações semelhantes como a dos “homens-zebra”. Procurei destacar a importância da educação como um dos poucos mecanismos capazes de problematizar e transformar esta realidade, mesmo que difícil, mesmo que parecendo utópico. Nesta ocasião, Paula trouxe relatos dos educandos e salientava que um deles já havia passado por uma situação de escravidão numa carvoaria. Ele ganhava um real por dia e esse dinheiro ainda ficava com o dono do empreendimento que cobrava pelo alimento e pelo pouso.
Ainda em relação às transformações no mundo do trabalho Cristina ilustrou as mudanças sociais decorrentes do processo de industrialização no Brasil. Mencionou que no mundo contemporâneo a cidade cresce verticalizada e muita opressão sofremos decorrente das demandas do setor econômico. Sabiamente destacou o quanto somos privados de liberdade, de espaço e do acesso à água limpa dos rios. Percebi neste HTPC o quanto as educadoras são sensíveis à temática da justiça social. Começava a perceber uma luz no início do túnel.
Dando continuidade aos HTPCs, avaliei que tinha que direcionar a discussão para a solução de um problema mais antigo: o da necessidade do registro do planejamento das aulas.
Amparada pelos princípios da autogestão[2], que defende que as decisões devem ser tomadas de forma horizontal, considerei relevante levantar com as educadoras quais eram os problemas pedagógicos observados por elas e as soluções para superá-los. Considerava este um caminho que poderia ter mais sucesso considerando que soluções trazidas por mim em relação ao registro do planejamento não estavam surtindo efeito.
Segui a discussão pedindo que levantassem quais os principais problemas da escola. Queixaram-se de uma circular interna que escrevi em tom incisivo para que não deixassem de entregar o planejamento na data. Tinha resolvido ser mais direta nesta circular, considerando que tinha verbalizado por diversas vezes o problema da falta de planejamento e questão não tinha sido resolvida. Ficou claro o incômodo delas em relação às cobranças.
O HTPC acabou saindo bem diferente do planejado, ficamos discutindo as cobranças e pouco tempo falando de outros problemas e como resolvê-los. Talvez seja preciso repensar como são feitas estas cobranças visando uma maior compreensão da necessidade delas no grupo.
Comentei sobre o conceito da autogestão e a ligação deste com a responsabilidade individual e coletiva. Saber identificar o problema e partir em busca de soluções coletivas não é fácil, mesmo porque não estamos habituados a essa prática, por isso que às vezes parece mais fácil esperar que o outro decida por nós.
Na minha avaliação percebi a distância do grupo no sentido de entender o sentido da autogestão, que não é fazer o que queremos. É preciso olhar e considerar o coletivo. Se uma pessoa dentro do contexto sai prejudicada não é a autogestão que está em jogo e sim a individualidade ou a força do mais forte. Assim como diz o documento Oficina de Formação em Educação em Economia Solidária a autogestão incorpora a participação como estratégia fundante na valorização dos diversos saberes. Ela une e humaniza o que o capitalismo divide e desumaniza em suas hierarquias valorativas.
Como não demos conta de concluir a pauta neste dia, propus que no próximo HTPC elas trouxessem textos que tratassem da importância do registro e do planejamento na prática pedagógica. Uma educadora contestou, pois disse que já dominava a questão. Sua dissertação de mestrado tratou da mesma temática. Destaquei que o grupo ainda tinha a aprender sobre o assunto e que neste caso, era preciso olhar para a necessidade de todas. Aproveitei a oportunidade e pedi que ela então me auxiliasse na formação do grupo, já que havia se debruçado sobre o tema em outras ocasiões.
RELATOS DE EXPERIÊNCIA II
Como falar sobre a importância do planejamento já estava se tornando assunto obsoleto, resolvi mudar as estratégias na atuação com as professoras. Planejei um HTPC em que iríamos discutir textos teóricos que tratassem do assunto, porém, ao invés destes textos serem sugeridos por mim, quem faria a pesquisa seriam as próprias professoras. Começamos o HTPC com a pesquisa realizada pela professora Paula. O texto[3] pesquisado destacava várias questões pertinentes em relação ao planejamento. O mesmo destacava os dez mandamentos necessários a esta prática: esquecer a burocracia; conhecer bem os educandos; planejamento como processo, às vezes é preciso fazer tudo outra vez, mas de outro jeito; é preciso estudar muito para ensinar bem; é preciso se colocar no lugar do educando; é preciso estabelecer prioridades e critérios, necessidades e dificuldades do grupo; é necessário pesquisar em várias fontes e se utilizar de diferentes métodos de trabalho; é importante conversar com as colegas e pedir ajuda quando necessário e por último, algo de extrema importância: escrever, escrever, escrever.
Achei interessante a escolha do texto de Paula que dialogava com a nossa necessidade e disse isso a ela. Fiquei pensando que eu poderia ter mudado a estratégia e pedir que os dez mandamentos do planejamento partissem delas, creio que ao problematizá-las as respostas sairiam do grupo, o que poderia ser mais significativo. Começamos a discussão e a educadora que eu tinha pedido para ajudar nesta formação destacou no grupo que existem várias nuances de planejamento, que é necessário ter foco e estes devem ter ligação com um projeto maior que é estar ligado a uma concepção. Foi para a lousa escreveu todos os caminhos necessários para um planejamento de qualidade. Ressaltou a necessidade da relação do planejamento com a concepção da Secretaria da Educação, com o PPP da escola, com o plano de curso da professora, com os projetos feitos segundo a caracterização da turma, da sequência didática de alguns conteúdos que precisam obedecer a níveis de complexidade para que os educandos aprendam. Deu exemplos de objetivos, conteúdos e encaminhamentos que poderiam ser realizados mediante o ensino do cordel. Neste caso, as educadoras foram levantando os objetivos que poderiam ser alcançados com os educandos por meio do cordel: conhecer este tipo de texto; identificá-lo; apropriação da linguagem; valorização da própria imagem considerando a proximidade que os educandos têm desta arte. Enfim, uma série de aspectos que ligavam o conteúdo a pertinência dele e os caminhos para que fosse possível alcançá-lo.
Raquel continuou a explanação falando sobre sequência didática e atividades permanentes como a leitura diária, que elas já fazem. Ressaltou que é no planejamento que elas têm autonomia, que é ali que são autoras de sua prática, quando percebem quais as necessidades dos educandos. Com o objetivo de socializar como realiza o seu planejamento, Raquel foi até o seu caderno de registros e leu suas reflexões:
“Fiquei surpresa com o desenho que eles fizeram do Policarpo Quaresma, preciso focar nas representações gráficas, pois as ilustrações são carentes de detalhes; o educando C. finalmente aprendeu expressões numéricas. Passei pela sala e percebi que na cabeça do A. tem micose, preciso tratar isso na aula de Ciências quando falar das doenças”.
Pedi que Raquel pausasse a leitura e comentei que o que ela estava fazendo era trazer vida para a sala de aula, que estava transformando as necessidades observadas em conteúdo. Keila pergunta se é isso que espero do grupo. Fico um pouco incomodada em dizer que sim, pois ao dar este tipo de resposta tenho receio delas enveredarem para a cópia do trabalho da outra, o que não é isso que espero. Disse que ela havia aprendido um caminho importante na gestão das aulas que é perceber as necessidades e transformar as mesmas em aulas.
Na continuidade da discussão Raquel destaca que o planejamento necessita de três focos: foco na aprendizagem; na dinâmica do grupo e na coordenação do grupo.
Terminamos o HTPC, pois já havia dado o horário. Destaco que pra mim esta formação foi bem interessante. Uma experiência que trouxe valorização no trabalho de Raquel que tem saber para passar ao grupo. Tenho conhecimento das questões que ela levantou, mas a estratégia escolhida por ela atingiu mais ao grupo que as que tinham sido apontadas por mim. Da mesma forma que elas precisam ter passos planejados para atingir aos educandos eu preciso também planejar os passos para que elas entendam como podem qualificar suas aulas e traze-las para um contexto educacional maior. Definimos que nosso próximo passo será levantar a caracterização da turma e planejar em conjunto as aulas da semana com foco nas atividades permanentes e sequência didática.
Pedi que elas avaliassem o encontro e as falas foram:
Keila “foi bem elucidativo, clareou bastante”;
Cristina:“não foi um HTPC foi uma aula, agora entendo melhor o que você quer de nós”;
Paula: “foi muito bom, adorei, aprendi porque confundia plano de curso com plano de ação”.
Raquel destaca: “interessante, agora é preciso ir para a prática do planejamento”.
Pensando em meus objetivos, os resultados das discussões foram pertinentes, pois de alguma forma mobilizou o grupo a pensar mais sobre si. Ainda há um longo caminho a percorrer e este demanda um projeto de formação que considere o ritmo de cada educadora e que tenha como meta constante a qualidade da educação na EJA.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Secretária Nacional de Economia Solidária. I Oficina Nacional de Formação/ Educação em Economia Solidária. Brasília, 2006, 47 paginas.
COSTA, A.C.G. da. Protagonismo Juvenil: Adolescência, Educação e Participação Democrática. Salvador: Fundação Odebrecht, 2000.
VIANA, N. Manifesto autogestionário. Rio de Janeiro: Achiamé, 2008.
Leia também:
- [1]Para preservar a identidade dos participantes, todos os nomes são fictícios. ↩
- [2]Autogestão é um dos princípios utilizados na Economia Solidária. Na autogestão as decisões são tomadas coletivamente de forma horizontal, diferente da heterogestão quando é a hierarquia quem decide.↩
- [3]Texto retirado do site em pesquisa feita em 20/10/11↩