Autora: Célia Aparecida Felipe Borges
Orientador: Prof. Dr. Sérgio Amadeu da Silveira
Co-orientação: Melina Rombach e Thiago Figueiras Pimentel
Aos meus colegas do CIEJA, educandos e educadores.
AGRADECIMENTOS
Agradeço à Universidade Federal do ABC, pela oportunidade deste curso, aos incubadores do ITCP- USP, Gabriela Rizzo Iervolino, Pedro Paulo Felippe, Elisângela Soares Teixeira, Danilo Queiroz e Maíra Etzel, pela dedicação com que orientaram nossos trabalhos e estudos.
SUMÁRIO
- 1. INTRODUÇÃO
- 2. CAPÍTULO I – Economia Solidária e Educomunicação em EJA
- 3. CAPÍTULO II – Conexões com a história da radiodifusão
- 4. RELATO DE ATIVIDADES
4.1 Radionovela
4.2 Proposições para programação - 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
- 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. INTRODUÇÃO
“Outro saber de que não posso duvidar um momento sequer na minha prática educativo-crítica é o de que, como experiência especificamente humana, a educação é uma forma de intervenção no mundo.”
Paulo Freire
Vivemos na atualidade o capitalismo em seu estágio mais desenvolvido, suplantando fronteiras e acirrando ainda mais as diferenças econômicas entre as nações e os seres humanos como um todo. Hoje mais de 50% das maiores economias mundiais são representadas por grandes corporações. Os governos sucumbem aos interesses destes grupos econômicos em vez de garantir os direitos ao trabalho, à alimentação, à educação, à saúde e moradia das populações do planeta.
Trata-se de um mundo em que seres humanos são classificados de acordo com seu poder de consumo. Alguns são considerados menos humanos que outros na medida em que se encontram economicamente excluídos. Segundo os critérios meritocráticos que fundamentam a competitividade e o individualismo da economia neoliberal, são responsáveis por seus infortúnios, como, por exemplo, a falta de qualificação profissional, o analfabetismo, o semianalfabetismo, o desemprego.
Da mesma forma que se admitia o extermínio de nativos americanos no processo de colonização do continente, o castigo físico e mesmo o assassinato de escravos afro descendentes no Brasil até o século XIX, baseando-se na premissa de que não eram cristãos, mas pagãos, não merecedores, portanto, da misericórdia divina e muito menos da humana, admite-se hoje que pessoas passem por todo tipo de privações por serem consideradas inaptas para o sistema e por ele serem “justamente” descartadas. Lixo humano é a maior produção atual do sistema capitalista: milhões de excluídos, esfomeados, doentes, esfarrapados.
Mesmo que fossem poucos, a situação já seria eticamente inadmissível. Mas são muitos, a quantidade de pobres no mundo ultrapassa 1 bilhão. A concentração da riqueza e da renda aumentou nos últimos tempos: os 2% mais ricos do planeta possuem mais da metade de toda a riqueza mundial; cerca de 90% da riqueza mundial está concentrada na América do Norte, na Europa e na região pacífico asiática. A desigualdade aumentou com o fenômeno da globalização, a quantidade de alimentos produzida no mundo hoje seria suficiente para alimentar quatro vezes a população da Terra. Entretanto, uma imensa quantidade de pessoas vive em situação de pobreza. Segundo dados do Índice de Pobreza Multidimensional (MPI) do Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU de 2010[1], cerca de 1,7 bilhões de pessoas em 109 países têm um terço da sua população vivendo em situação de pobreza multidimensional – isto é, com pelo menos 33 por cento dos indicadores que refletem a privação aguda na saúde, educação e padrão de vida. A lógica capitalista, implacável e excludente, produz mais desigualdade e mais miséria.
Experiências no século passado provaram que não vai ser à força que a humanidade superará o capitalismo. Regimes totalitários se mostraram incapazes de controlar a voracidade do sistema, devido à sua fragilidade estrutural intrínseca, uma contradição essencial: sua natureza antidemocrática.
Se compreendermos o conceito de democracia de forma multidimensional, não só do ponto de vista político, mas também social e econômico, veremos o capitalismo como um sistema essencialmente antidemocrático.
O modo de produção vigente, baseado nos princípios de direito à propriedade e liberdade individuais, produz organizações hierárquicas baseadas na competição e no individualismo, inviabilizando a democratização do sistema. Nesse sentido, defender a democracia não é somente defender o direito à participação, mas também à gestão dos meios de produção. A perspectiva de uma economia baseada não na competição, mas na cooperação e na solidariedade se apresenta como uma alternativa de organização social e política essencialmente democrática e, portanto, diferente dos parâmetros capitalistas. Capaz de sobreviver dentro do próprio sistema e produzir as condições necessárias para a gestação de um mundo mais justo e igualitário.
Existem diferentes autores que se dedicam à conceituação da Economia Solidária. Segundo Paul Singer, chamamos de Economia Solidária uma forma de produção, consumo e distribuição de riqueza que se apresenta como alternativa ao sistema econômico hegemônico por estar centrada na valorização do ser humano e não do capital. Na convivência com várias outras formas de atividade econômica de mercado, tem base associativista e cooperativista e é voltada para a produção, consumo e comercialização de bens e serviços de modo autogerido, tendo como finalidade a reprodução ampliada da vida. Para o autor, na perspectiva da Economia Solidária, o trabalho torna-se um meio de libertação humana, na medida em que visa à democratização econômica.
As experiências em Economia Solidária envolvem várias dimensões: social, econômica, política, ecológica e cultural, porque, além da geração de trabalho e renda, se projetam no espaço público, tendo como perspectiva a construção de um ambiente socialmente justo e sustentável, visando à emancipação dos trabalhadores enquanto sujeitos protagonistas de direitos.
As práticas econômicas baseadas na solidariedade são milenares, mas no mundo moderno a Economia Solidária se origina na primeira Revolução Industrial, quando surgem as primeiras “Trade Unions” e as primeiras cooperativas na Grã-Bretanha, porque, com a invenção das máquinas a vapor houve uma expulsão dos artesãos do mercado.
Enquanto conceito, a Economia Solidária surge na crise mundial do final do século passado, na década de 90, motivada pelo desemprego em massa. Foi proposta por Singer como uma estratégia de luta contra as desigualdades sociais.
A construção da economia solidária é uma destas outras estratégias. Ela aproveita a mudança nas relações de produção provocada pelo grande capital para lançar os alicerces de novas formas de organização da produção, à base de uma lógica oposta àquela que rege o mercado capitalista. Tudo leva a acreditar que a economia solidária permitirá, ao cabo de alguns anos, dar a muitos, que esperam em vão um novo emprego, a oportunidade de se reintegrar à produção por conta própria individual ou coletivamente…(SINGER: 2000 p.138).
No mesmo período, no âmbito da Educação, Paulo Freire observa que
A ideologia fatalista, imobilizante, que anima o discurso neoliberal anda solta no mundo. Com ares de pós-modernidade, insiste em convencer-nos de que nada podemos contra a realidade social que, de história e cultural, passa a ser ou a virar “quase natural”. Frases como “a realidade é assim mesmo, que podemos fazer?” ou “o desemprego no mundo é uma fatalidade do fim do século” expressam bem o fatalismo desta ideologia e sua indiscutível vontade imobilizadora. Do ponto de vista de tal ideologia, só há uma saída para a prática educativa: adaptar o educando a esta realidade que não pode ser mudada. O de que se precisa, por isso mesmo, é o treino técnico indispensável à adaptação do educando, à sua sobrevivência. O livro com que volto aos leitores é um decisivo não a esta ideologia que nos nega e amesquinha como gente. (FREIRE: 1996 p.10).
Sob a ótica destes autores, ao relacionar os valores e práticas da Economia Solidária com as necessidades na formação da Educação de Jovens e Adultos (EJA), podemos perceber a busca de uma proposta educativa que se oriente na horizontalidade das relações humanas, na autogestão, no cooperativismo, na construção de novas relações entre as pessoas e na reintegração dos saberes, articulando-se às práticas cotidianas de vida e trabalho.
Uma proposta educativa libertária baseada nas propostas de Freire e nos princípios da Economia Solidária concebe estudantes e educadores como sujeitos de sua aprendizagem, porém não como seres isolados, mas como atuantes em diferentes grupos sociais, capazes de gerir sua existência individual e coletiva, conviver e respeitar a diversidade étnica, etária, sexual, física, intelectual, etc.
Nesse sentido, notamos que só se aprende algo que praticamos. Para Freire:
O professor que realmente ensina, quer dizer, que trabalha os conteúdos no quadro da rigorosidade do pensar certo, nega, como falsa, a fórmula farisaica do “faça o que mando e não o que eu faço”. Quem pensa certo está cansado de saber que as palavras a que falta corporeidade do exemplo pouco ou quase nada valem. Pensar certo é fazer certo.(FREIRE: 1996 p.19)
Partimos da premissa de que mais que o currículo, as formas como as instituições escolares estão organizadas, sua estrutura e hierarquização, refletem sua potencialidade para reproduzir e reafirmar a estrutura social e econômica vigente. Do mesmo modo, melhor que o conteúdo, as formas de abordagem curricular e mecanismos de avaliação, traduzem mais fielmente as concepções de educação que norteiam o trabalho escolar.
Nesse sentido, não é possível, por exemplo, aprender democracia sem praticá-la, não adianta colocá-la como tema no currículo sem exercê-la no espaço escolar. O mesmo ocorre com os princípios, conteúdos e metodologias da Economia Solidária ao serem incorporados ao currículo da EJA. A educação e a formação em Economia Solidária implicam numa construção de novas relações e têm como perspectiva o trabalho-criação, no qual as pessoas têm o controle sobre o processo, cuja finalidade é o próprio ser humano.
A fragmentação curricular em disciplinas hierarquizadas, a estrutura subdividida em pequenos períodos de quarenta e cinco minutos, o pouco espaço para o trabalho coletivo – realidade na maior parte da EJA na cidade de São Paulo – traduzem um modo de pensar próprio das ideologias capitalistas que não concebem o ser humano em sua totalidade, integridade e multidimensionalidade. Educadores e educandos se submetem a uma organização burocrática que pouca relação tem com seu tempo de criação, aprendizagem e reflexão. Defendemos que há grande dificuldade para abordar os princípios da democracia e autogestão nas propostas pedagógicas em instituições que assim se organizam, correndo-se o risco de descolar discurso e prática numa espécie de “hipocrisia pedagógica”.
Os CIEJAs têm uma estrutura mais flexível, que abre espaço para diferentes possibilidades educativas. O CIEJA Butantã tem construído em seu percurso uma proposta pedagógica diferenciada, que tem se viabilizado pelo trabalho coletivo e gestão democrática, contribuindo para que todos os sujeitos de conhecimento envolvidos no processo de aprendizagem possam resgatar os sentidos do trabalho, construindo sua autonomia. O atendimento está organizado em módulos, mantendo a divisão entre Fundamental I e II, com professores polivalentes no primeiro e especialistas no segundo. As aulas têm duração diária de 2h15min, de 2ª a 5ª feira, com horários diferenciados às 6ªs feiras para viabilizar o trabalho coletivo dos docentes e atender às demandas do trabalho pedagógico com aulas, projetos e oficinas em que os alunos podem se inscrever de acordo com seu interesse e desenvolver outras habilidades. O currículo, organizado em áreas de conhecimento, busca a transdisciplinaridade e a metodologia dialógica e investigativa tem potencialmente ligação com os princípios, conteúdos e concepções metodológicas da Formação/Educação em Economia Solidária. Trata-se de um trabalho em construção que busca novos desenhos na reflexão e problematização da prática que também encontra dificuldades internas e externas. Há ainda pouca participação dos educandos no projeto pedagógico, ficando as decisões restritas à equipe docente. Em termos de planejamento, faz-se muito para o aluno e pouco com o aluno.
Há, entretanto, atividades pontuais e projetos que visam o protagonismo dos estudantes, como a que propomos neste trabalho – a criação da Rádio CIEJA Butantã, do “blog” CIEJA na Rede e o projeto“CIEJA na rua” que, entre outros, são embrionários de ações pedagógicas libertárias, mais associadas aos princípios e métodos de uma educação em consonância com os princípios da Economia Solidária, pois respeitam o tempo de caminhada da cada grupo e estimulam a criação de novos conhecimentos.
Hoje temos a possibilidade de trabalhar com agrupamentos variados de alunos, integrando estudantes de diferentes módulos, idades e etapas de aprendizagem em turmas heterogêneas que constituem grupos e atuam coletivamente na realização dos projetos que lhes são apresentados.
Desenvolvemos o projetos da rádio escolar, definição de programação e criação de propagandas de rádio, nas modalidades institucional e campanha de divulgação da feira de trocas da escola, envolvendo a disciplina de Arte e os módulos iniciais de alfabetização. Assim, pretendemos viabilizar o trabalho coletivo e criativo, o desenvolvimento da autonomia da turma, preparando o terreno para futuro protagonismo dos estudantes do CIEJA na concepção e produção de programas de rádio para a emissora que estamos implantando na escola.
Esses projetos foram desenvolvidos com alunos de diferentes idades, em diversas etapas de aprendizagem da leitura e da escrita, sendo alguns com necessidades educacionais especiais, com deficiência intelectual, mental e física. Foram realizados em aulas de 2h15min cada, num dia específico da semana, previamente combinado. Além disso, foi complementada em outras aulas com exercícios de leitura e escrita relacionados às propostas de trabalho a serem realizadas pela turma.
2. CAPÍTULO I – ECONOMIA SOLIDÁRIA E EDUCOMUNICAÇÃO NA EJA
As experiências em Economia solidária, não-capitalistas, propõem a submissão da economia ao social. Baseadas em valores como a cooperação, a partilha, a reciprocidade e a solidariedade, organizam-se de modo autogestionário. Para além das práticas essencialmente econômicas, têm como objetivo a emancipação das classes oprimidas pelo sistema capitalista.
Neste contexto, o trabalho coletivo faz-se fundamental, exigindo atitudes, posturas e práticas que rompam com as hierarquizações tradicionais ideologicamente impostas pelo sistema vigente. Uma vez que somos seres historicamente condicionados, necessitamos de um esforço de formação das classes populares no sentido de desconstruir valores arraigados pela experiência cotidiana de submissão, numa perspectiva educativa que se alinhe a propostas libertárias e progressistas [2] e proponham pedagogicamente formas de relacionamento humano solidárias, que respeitem autoridades legítimas, mas repudiem qualquer modo de autoritarismo e discriminação.
As proposições educativas que pretendam promover o desvelamento das relações de dominação que perpassam a vida diária das pessoas, não podem desconsiderar o poder da mídia na domesticação do comportamento das classes populares. Como observa Paulo Freire, todo processo comunicativo é ideologizado.
Na verdade, toda comunicação é comunicação de algo, feita de certa maneira em favor ou na defesa, sutil ou explícita, de algum ideal contra alguém, nem sempre claramente referido. Daí também o papel apurado que joga a ideologia na comunicação, ocultando verdades mas também a própria ideologização no processo comunicativo. (FREIRE: 1996 p.88)
Entendemos que o processo educativo deve desconstruir o discurso propagado pela mídia, que representa os interesses capitalistas em detrimento do direito à palavra, ao pensar, à dignidade da pessoa humana, compreendida como sujeito social e histórico, atualmente reduzida à categoria de consumidor na perspectiva dos chamados meios de comunicação de massa [3].
As formas de atuação pedagógica que tenham como sentido desvelar as ações ideologizantes da mídia não podem prescindir da integração entre teoria e prática para se tornarem eficazes. Como observa Freire:
(…) O meu discurso sobre a Teoria deve ser o exemplo concreto, prático, da teoria. Sua encarnação (…)
Fora disso, me emaranho na rede das contradições em que meu testemunho, inautêntico, perde eficácia. Torno-me tão falso quanto quem pretende estimular o clima democrático na escola por meios e caminhos autoritários.(FREIRE: 1996 p. 27)
Neste contexto, promover o protagonismo dos estudantes numa perspectiva aliada aos princípios da Economia Solidária em projetos educomunicativos[4] se apresenta como rica possibilidade de atuação pedagógica.
Soares (2002) define a educomunicação como sendo “o conjunto das ações inerentes ao planejamento, implementação e avaliação de processos e produtos destinados a criar e fortalecer ecossistemas comunicativos [5] em espaços educativos, melhorar o coeficiente comunicativo das ações educativas, desenvolver o espírito crítico dos usuários dos meios massivas, usar adequadamente os recursos da informação nas práticas educativas, e ampliar capacidade de expressão das pessoas”.
Segundo o autor, no Brasil, a tentativa de incorporar os meios de informação aos processos educativos não é recente, remonta a década de 30 do século passado, com teóricos como Anísio Teixeira, que já pregava essa necessidade. Nos anos 60, Paulo Freire em seu projeto nacional de alfabetização de jovens e adultos, através do MEB – Movimento de Educação de Base – já usava o rádio. Depois, quando surge a televisão, foi criado um sistema de TVs educativas que prometiam revolucionar a educação nacional. O autor cita ainda, na educação de jovens e adultos, os telecursos e os programas de educação a distância.
Entretanto, Soares afirma a resistência da educação formal em incorporar as propostas educomunicativas e apresenta os movimentos da sociedade civil como principais articuladores dessa tendência.
Nas últimas décadas, manifestações ocorridas na sociedade civil vêm revelando a existência de uma comunicação diferenciada: as pessoas, ao participarem de organizações e movimentos comprometidos com a solução dos grandes problemas sociais, acabam inseridas num processo de educação não formal relacionado diretamente a propostas populares de formação para a cidadania. Nesse sentido, estaríamos diante de um fenômeno novo, mobilizador; com exigências teórico-metodológicas que nem sempre contam do ideário ou das práticas previstas para o ensino formal.
O fundamento que sustenta a ação destes setores organizados da sociedade está embasado no princípio de que os meios de comunicação são bens públicos, representando uma conquista da humanidade enquanto instrumentos capazes de democratizar, de forma ágil, a informação, a cultura e o conhecimento. (SOARES: 2002 p. 4)
SOARES (1999) afirma que “as pesquisas do Núcleo de Comunicação e Educação da ECA/USP vêm confirmando esta tendência, concluindo que, em decorrência da ação das organizações sociais, à margem da Universidade e do sistema formal de ensino, a união estratégica entre os campos da Comunicação e da Educação vem ensejando a emergência de uma nova prática de intervenção social, voltada essencialmente para o fortalecimento da capacidade de expressão dos jovens e adultos para que eles mesmos descubram seu potencial”.
Entretanto, há iniciativas de políticas públicas voltadas para a educomunicação, como a antigo projeto “Educom” da rede municipal de ensino de São Paulo, citado pelo autor, que teve início em 2001 e terminou em 2004. Atualmente há o projeto “Nas ondas do rádio” nesta rede de ensino, do qual o CIEJA Butantã faz parte, que tem como principal meio a internet, possibilitando às escolas participantes diversas modalidades de atuação: “podcasts”, “webradio”, “blogs”.
O modelo de difusão de informações se alterou nas últimas décadas, saindo de um desenho de rede descentralizada para uma configuração de rede distribuída [6]. Soares observa essa alteração se referindo a passagem de um modelo de comunicação linear a um modelo em redes de comunicação distribuída.
Um dos deslocamentos a serem contemplados, numa visão mais dialética da presença tecnológica no mundo, diz respeito à transferência de um modelo de comunicação linear a um modelo em redes, de comunicação distribuída. E este fato desestabiliza definitivamente os modos tradicionais de se fazer a educação. Frente a este panorama, o convite é para que comunicadores, educadores, engenheiros, gestores de informação pensem, desenhem e avaliem juntos a introdução das novas tecnologias na educação, perguntando-se permanentemente pelo modelo de comunicação que subjaz ao sistema educativo específico.
Para FREIRE (1996) “não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro (…) Nas condições de verdadeira aprendizagem os educandos vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinado, ao lado do educador, igualmente sujeito do processo.” O autor considera que as propostas educativas conservadoras entendem que ensinar é transmitir conhecimentos e que, por outro lado, na perspectiva progressista, os conhecimentos não podem ser transmitidos do professor aos formandos, mas devem ser construídos lado a lado. No primeiro caso podemos fazer uma analogia entre a ação pedagógica e a comunicação linear citada por Soares, na qual a comunicação se dá num único sentido. No segundo, a construção do conhecimento não está centrada no professor, se faz no diálogo, na interlocução entre educadores e educandos, aproximando-se de uma configuração de rede distribuída.
A comunicação (…) implica numa reciprocidade que não pode ser rompida.(…) não há sujeitos passivos. (…) A educação é comunicação, é diálogo, na medida em que não é transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados. (FREIRE: 1983 p.46)
A promoção de ações educomunicativas transcende potencialmente o domínio da pedagogia tradicional conservadora. Abre portas e possibilidades de atuação discente, exercitando práticas do saber ouvir e falar numa dialogicidade que funda os princípios da solidariedade, do respeito ao outro e comprometimento coletivo, tão caros às propostas empreendedoras de Economia Solidária.
Como referência de atividade educomunicativa na EJA, citamos a implantação da Rádio CIEJA Butantã, que ocorre organicamente integrada aos propósitos formativos da Economia Solidária. A ideia principal que orienta esta ação é a de que a rádio escolar atue no sentido de democratizar as relações internas e externas da escola, tendo como objetivos principais a autogestão, o acesso e a produção de conhecimento, a divulgação de propostas e eventos de caráter solidário, de estímulo à participação e cidadania. Uma ação exemplar nesse sentido foi a campanha de divulgação da feira de trocas ocorrida no início de dezembro de 2011, na qual alunos de módulos I e II, em fases iniciais de alfabetização, fizeram propagandas com o intuito de divulgar o evento e esclarecer o público sobre o conceito solidário de clube e feira de trocas.
Os educandos estudaram o gênero publicitário e a linguagem radiofônica para compreender sua estrutura e técnicas, criaram propagandas institucionais da escola e pesquisaram sobre ações e objetivos de eventos de economia solidária, lendo textos e assistindo a vídeos. Finalizaram o trabalho fazendo a divulgação da feira pela rádio. As gravações foram ouvidas no espaço escolar e postadas na internet no “blog” CIEJA na Rede.
Desse modo, a prática da educomunicação na EJA torna-se aliada na luta por uma sociedade mais justa e igualitária, ao alicerçar a formação dos estudantes com os princípios solidários de cooperação e autogestão. Além disso, promove o protagonismo destes educandos, possibilitando sua emancipação das opressões impostas pelo sistema capitalista, por meio de ações, reflexões e do estudo no sentido de desenvolver uma consciência crítica[7] e um comportamento atuante e participativo na sociedade.
3. CAPÍTULO II – CONEXÕES COM A HISTÓRIA DA RADIODIFUSÃO
Tudo o que era sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e as pessoas são finalmente forçadas a encarar com serenidade sua posição social e suas relações recíprocas.
(Manifesto Comunista)
A história da radiodifusão está intimamente ligada às transformações ocorridas com a Revolução Industrial, que reconfigurou a geografia do mundo, estreando a primazia da vida urbana, que com o advento da energia elétrica inaugurou o que chamamos de modernidade.
A comunicação que estava diretamente associada ao transporte físico das informações passou a ser possível a distância com a invenção do telégrafo em 1837, mas foi radicalmente potencializada quando no início do século Marconi inventa o telégrafo sem fio. Isto possibilitou que em poucos anos ocorresse a primeira radiodifusão (1906, nos Estados Unidos).
No Brasil, alguns anos antes (1893), o padre e cientista Roberto Landell de Moura realizou a primeira transmissão falada, sem fios, por ondas eletromagnéticas; embora este fato seja de pouco conhecimento no exterior. Na Irlanda, em 1916, houve uma revolta pela independência e os revoltosos usaram o rádio para transmitir mensagens. Na Alemanha o rádio também tinha sido usado pelo movimento operário como meio para coordenar o movimento no país e manter contato com o regime revolucionário russo. Paralelamente à proliferação das emissoras comerciais, as rádios dos movimentos operários cresciam, criando, por exemplo, as “comunidades de ouvintes” para debater as notícias transmitidas e fazendo aparelhos de emissão em larga escala para divulgar as informações políticas sob ótica diferente das rádios oficiais.
FREDERICO (2007) observa que o rádio, na sua origem, veio para permitir a interação e a mobilização política das pessoas e não para ser apenas um difusor de informações controlado pelos monopólios e a serviço de uma lógica mercantil. Resgata que, em meio às transformações políticas ocorridas no início do século XX, o alemão Bertold Brecht, entre 1927 e 1932, escreveu vários artigos sobre este novo meio de comunicação, nos quais chama os operários a fazerem uso desse recurso tecnológico para tomar a palavra, mas, ao mesmo tempo, profetiza o atrofiamento desse meio de comunicação e sua cooptação pelo sistema.
Com o tempo e as mudanças na configuração política no mundo, a repressão e a censura acabaram por sufocar a voz radiofônica dos operários, abrindo espaço para que os grupos econômicos monopolizassem de vez esse meio de comunicação, que perdeu sua essência de interatividade e passou a ser apenas um meio de difusão de informações e entretenimento. O público, que antes compartilhava ativamente o uso dos aparelhos de rádio, passou a ser passivamente receptor.
Para Brecht, que defendia que a comunicação deve ser um processo interativo, o rádio, que era um “instrumento de comunicação” passou a ser um “aparelho de distribuição”, tinha tudo para ser uma nova possibilidade de comunicação e passou apenas a reproduzir os procedimentos dos meios anteriores.
No Brasil o panorama das telecomunicações é exemplar como reflexo da desigualdade social do país. FREDERICO (2007) chama a atenção para o fato de que o mesmo processo que aconteceu com o rádio houve com a televisão e está acontecendo também com a internet. Entretanto, para não correr o risco de cair na “imobilização do determinismo histórico”[8], ainda é possível enxergar possibilidades na interatividade da internet, que se coloca hoje como meio para postagens de conteúdos de linguagem radiofônica, como os “podcasts” e “webradios”.
No projeto que estamos desenvolvendo no CIEJA, temos também como objetivo desvelar com os alunos o universo da radiodifusão, incluindo o conhecimento de sua história e o estabelecimento de relações com a conformação política e social do país. Criamos um “blog” (http://www.ciejanarede.wordpress.com), no qual são colocadas, entre outras coisas, as produções radiofônicas dos alunos e também vídeos e textos de interesse no assunto como o do grupo Intervozes “Levante sua voz”, Ilha das Flores, de Jorge Furtado e “A História das coisas”. Esses filmes foram assistidos e debatidos em sala de aula, fazendo parte de diversas atividades da escola. Os alunos também puderam postar suas reflexões e opiniões no “blog”, enviando comentários sobre seu conteúdo.
4. RELATO DE ATIVIDADES
4.1 Gravação de radionovela
4.2 Proposições para a programação da rádio escolar
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim como a Economia Solidária, que surgiu como contraponto ao capitalismo, trazendo alternativas de geração de trabalho e renda e propondo mudanças na forma de pensar e se relacionar das pessoas, a escola não pode mais ser uma mera transmissora de conhecimentos, precisa ser transformadora, mais humana e crítica.
Para Paul Singer, ações de Economia Solidária são experiências libertadoras, pois oferecem melhores ambientes de trabalho, mais igualitários, onde o coletivo é fundamental para o êxito. Suas características básicas são: cooperação, autogestão e solidariedade. Características também necessárias à prática nas escolas de jovens e adultos, segundo a concepção de Paulo Freire, para quem a educação é um modo de libertação, pois além de conhecer a realidade, o educando pode vislumbrar por meio do processo educativo possibilidades para transformá-la.
Se pensarmos nos desafios da Economia Solidária numa sociedade dominada pelo capitalismo, podemos mais uma vez nos lembrar da importância do papel da escola neste processo. A sociedade contemporânea, dominada pelo ideário neoliberal, amplamente difundido pela mídia e reforçado pelas práticas institucionais, está alienada, a mercê de pequenos grupos que se mantêm no poder. Assim como a educação que se diz neutra, mas ideológica, é usada para garantir o “status quo”.
Numa sociedade midiática e informatizada, faz-se necessário ao desenvolvimento do espírito crítico dos educandos a compreensão dos sistemas de comunicação, suas linguagens e formas de produção. A partir da vivência, da prática comunicativa, sua reflexão e avaliação, viabiliza-se uma análise fundamentada dos produtos culturais veiculados pelas mídias na atualidade, tornando possível o desvelamento de seu caráter ideológico e sua consequente desnaturalização.
Mudar a concepção de que na alfabetização o aluno deve apenas ser treinado para ler e escrever é um grande desafio para o educador. Para que a escola seja transformadora, crítica, libertária, humana e democrática, precisamos instaurar práticas de linguagem de outros ambientes discursivos que fazem parte do cotidiano dos alunos. É neste sentido que pensamos numa rádio escolar em que o aluno atue como um protagonista social, e dessa forma, se contraponha ao sistema de dominação presente no mundo atual.
Hoje a mídia é influência decisiva no cotidiano da população. As propagandas são grandes influenciadoras de opinião. Precisamos desconstruir esse discurso midiático com atividades de linguagem voltadas para a produção significativa de programas radiofônicos, nas quais o estudante possa entender como tudo funciona atrás dos bastidores. É a prática agindo na transformação da sociedade. Em seus estudos sobre a teoria e a prática, Paulo Freire nos coloca que uma não vive sem a outra, nos explica que teoria é uma reflexão que se faz de experiências vividas pelo homem, de analisar e refletir a sociedade aprimorando seu caráter crítico. E a prática aparece como transformadora do conhecimento do mundo através da conscientização de ser, estar e agir do homem.
Com a implantação de uma rádio na escola, outras práticas pedagógicas podem ser planejadas no sentido de se desenvolver a linguagem radiofônica. Além disso, podemos implementar práticas de gestão coletiva e exercício de democracia, ao planejar assembleias para decidir conteúdo e programação da emissora, atividades que também enriquecem o processo de alfabetização, pois envolvem a oralidade e a escrita como forma de registro e divulgação das decisões tomadas.
Paulo Freire acredita que a capacidade criadora do homem está associada a sua integração com o mundo.
A partir das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vai ele dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade. Vai humanizando-a. Vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo é o fazedor. Vai temporalizando os espaços geográficos. Faz cultura. E é ainda o jogo destas relações do homem com o mundo e do homem com os homens, desafiado e respondendo ao desafio, alterando, criando, que não permite a imobilidade, a não ser em relativa preponderância, nem das sociedades nem das culturas. E, na medida em que cria, recria e decide, vão se conformando as épocas históricas. É também criando, recriando e decidindo que o homem deve participar destas épocas (FREIRE, 1967, p. 43).
Nas atividades de gestão da rádio, criação de programas e propagandas, os alunos aprendem fazendo. Tornam-se agentes de seu saber. Aprendem a respeitar e a trabalhar coletivamente com o outro. Dialogam, criam, se mostram. O fazer criativo exige essa integração.
Concluímos observando que os temas centrais deste estudo – Economia Solidária, Educação/ alfabetização de jovens e adultos e a utilização da comunicação no projeto escolar – estão intimamente relacionados e podem compartilhar de objetivos comuns, possibilitando que os estudantes/ trabalhadores sejam protagonistas na transformação do seu mundo e do seu aprendizado.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BALTAR, M. Letramento radiofônico na escola. Linguagem em (Dis)curso – LemD, v. 8, n. 3, p. 563-580, set./dez. 2008
CONSANI, Marciel. Como usar a rádio na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2007. 187p.
CURY, C. R. J. Parecer CNE/CEB 11/2000 que dispõe sobre as diretrizes curriculares para a educação de jovens e adultos. Brasília: MEC, CNE, 2000. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/cne/>
FREDERICO, C. Brecht e a “Teoria do rádio”. Estudos avançados, v. 21, n.60, p. 217-226, 2007.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996. 54p.
_____________. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. 107p.
_____________. Extensão ou comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. 93p.
LUZ, Dioclécio. A arte de pensar e fazer rádios comunitárias. Brasília: Dioclécio Luz, 2007. 229p.
SALVATIERRA, Eliany. Ecossistema Cognitivo e Comunicativo. Disponível em <http://www.usp.br/nce/aeducomunicacao/saibamais/textos/>
SINGER, Paul. Introdução a Economia Solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002.127 p.
SOARES, Ismar de Oliveira. Alfabetização e Educomunicação. Disponível em <http://www.usp.br/nce/wcp/arq/textos/89.pdf>. Acesso em 5 de novembro de 2011
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Cartilha de Economia Solidária do Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES). Disponível em <http://www.fbes.org.br/option=com_docman&task=doc_download&gid=351&Itemid=18>
Projeto Nas Ondas do Rádio. Disponível em <http://portalsme.prefeitura.sp.gov.br/anonimo/educom/nasondas.aspx>
Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU 2010. Disponível em <http://hdr.undp.org/en/reports/>
- [1] Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU 2010. Disponível em http://hdr.undp.org/en/reports↩
- [2]Termos utilizados no sentido atribuído a eles por Paulo Freire.↩
- [3]Sentido empregado por Adorno↩
- [4]Ver SOARES, Ismar “Mas, afinal, o que é educomunicação?” ↩
- [5] Conceito desenvolvido por Pierre Lévy. Ver SALVATIERRA, Eliany “Ecossistema Cognitivo e Comunicativo” ↩
- [6]Conceito desenvolvido por Paul Baran em “On Distributed communications” , 1964 ↩
- [7]No sentido atribuído por Paulo Freire ao termo.↩
- [8]No sentido usado por Paulo Freire↩