Educação Popular e Economia Solidária: diálogos possíveis na Educação de Jovens e Adultos

Autora: Vanessa Elsas Porfirio de Faria
Orientadora: Vera Lucia Queiroga Barreto
Co-orientação: Andreia Queiroga Bareto

 

Aos    estudantes    e    professores    do    CIEJA    Butantã,    que diariamente ensinam-me o valor da solidariedade.
Aos  formadores  do  ITCP  USP,  Gabriela  Rizzo  Iervolino, Pedro   Paulo  Felippe,  Elisangela  Soares  Teixeira,  Danilo Queiroz   e   Maíra   Etzel,   por   reanimarem   o   sonho   pela construção de outro mundo possível.

 

AGRADECIMENTOS

À Universidade Federal do ABC e professores do Curso de Especialização em EJA e Economia  Solidária, por reanimarem o diálogo entre EJA e Economia Solidária e abrir espaço aos aprendizados advindos das escolas públicas.

Aos  formadores  do  ITCPUSP,  pela  generosidade  e  empenho  em  construir  o conhecimento de mãos dadas com professores e alunos.

Aos  Professores  e  Gestores  do  CIEJA  Butantã  e  CIEJA  Campo  Limpo  pelo inestimável compromisso com a qualidade da educação de jovens, adultos e idosos e pela contribuição nos estudos.

A Célia Aparecida F. Borges, Cristina da Silva Ferreira, José Rodrigues Ferreira Junior,   que   tornaram   esse   trabalho   possível   e   se   aventuraram   comigo   no desenvolvimento do Projeto CIEJA na Rua.

 

Mãos Dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela, não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins. O tempo é a minha matéria, do tempo presente, os homens presentes, a vida presente.
Carlos Drummond de Andrade

 

SUMÁRIO

  • 1. INTRODUÇÃO
    1.1 Objetivos
    1.2 Justificativa
    1.3 Etapas do Estudo e Métodos
  • 2.  EJA:  ENTRE  O  FUTURO  APRISIONADOR  E  A  CONSTRUÇÃO  DA PRÁTICA LIBERTÁRIA
    2.1 As intencionalidades que permeiam a oferta da EJA
    2.2 O contexto do CIEJA Butantã: buscando a construção da escola de jovens e adultos
    2.3 O perfil dos estudantes do CIEJA Butantã em 2011
  • 3. EJA E ECONOMIA SOLIDÁRIA
  • 4. EDUCAÇÃO POPULAR E EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: POR UMA PEDAGOGIA DA PARTICIPAÇÃO POPULAR
    4.1 A nova classe média e o papel da educação
    4.2 Paulo Freire e a Participação Popular
  • 5. PROJETO CIEJA NA RUA: PARA ALÉM DOS MUROS DA ESCOLA
    5.1 Sensibilização e Mobilização
    5.2 Reconhecimento do território
    5.3 Intervenção Coletiva
    5.4 O começo do fim ou o fim do começo?
  • 6.  PERSPECTIVAS PARA O DIÁLOGO ENTRE EDUCAÇÃO POPULAR E ECONOMIA SOLIDÁRIA NA EJA
  • REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
  • ANEXOS

 

1. INTRODUÇÃO

Durante o curso de especialização EJA e Economia Solidária, oferecido pela Universidade Federal do ABC em convênio com o ITCP USP, diferentes profissionais da educação foram  incentivados a refletir sobre as intencionalidades assumidas pelo trabalho educativo na sociedade  capitalista e a vislumbrar outra organização social possível – aquela ancorada na Economia Solidária.
Esse trabalho de conclusão do curso visa apresentar as reflexões e práticas de educativas    desenvolvidas    ao    bojo    de    uma    intencionalidade    diversa    daquela tradicionalmente oferecida nos sistemas públicos de ensino, pautada na participação popular e na construção de outras relações sociais e econômicas.

Utilizamos  os  conhecimentos  acumulados  pela  Educação  Popular,  tal  como concebida  em   diferentes  iniciativas  educativas  durante  a  década  de  1960  e  no pensamento do Professor Paulo  Freire, como base do diálogo entre a Educação de Jovens e Adultos e Economia Solidária.

Nossa intenção  era (re)conhecer    relações  possíveis  de serem  feitas  entre a Educação  Popular   e a criação de uma cultura de participação democrática na escola pública,  a  partir  da  percepção,  mobilização  e  vivência  dos  trabalhadores  jovens  e adultos e idosos.

Observamos,  desde  o  início  de  nosso  trabalho,  que  a  educação  popular  é fundamental    para    o    desenvolvimento    da    Economia    Solidária,    na    construção, consolidação   e   disseminação   de   seus   princípios   e   valores   não   só   junto   aos empreendimentos solidários, mas também às instituições oficiais de ensino.

Partimos  do  pressuposto  de  que  as  práticas  educativas,  fundamentadas  no princípio   democrático  da  Economia  Solidária,  não  poderiam  se  realizar  sem  o reconhecimento dos sujeitos da EJA, da ampliação dos sentidos da aprendizagem para os educandos e nem se afastar da participação dos mesmos de sua formulação.

Desse modo, amparamos nossa análise em duas frentes: reconhecer os sentidos as demandas de aprendizado dos alunos do Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos  do  Butantã  (CIEJA   BT)  e  promover  a  gestão  democrática  do  ensino, investigando as possibilidades de obter maior participação dos alunos na construção do conhecimento dentro e fora da escola no Projeto CIEJA na Rua.

1.1 Objetivos

– Investigar  diferentes  intencionalidades  da  Educação  Popular  na  lógica  da sociedade capitalista e na lógica da Economia Solidária e coloca-las em diálogo com a Educação de Jovens e Adultos;
– Dialogar com os saberes e demandas de aprendizado dos jovens e adultos;

– Sistematizar prática de ensino, que privilegia a apreensão da leitura de jovens, adultos e idosos sobre o território escolar, sua crítica e ação sobre ele.

1.2 Justificativa

A educação popular passou por um período de efervescência no Brasil em um momento em  que as tensões entre trabalho e capital já não podiam mais ser caladas diante da opressão do Estado representativo das elites.

Nesse   cenário   a   Educação   de   Jovens   e   Adultos   esteve   frequentemente relacionada a concepções compensatórias e assistencialistas, já que essa população não faz parte, tradicionalmente, do  projeto de futuro burguês. As iniciativas oficiais, dos Municípios,   Estados   e   União   surgem   no   bojo   dessa  concepção   assistencial   e “voluntariosa”,    ganha    força    no    período    de    industrialização    para    formar    não trabalhadores  emancipados, mas “operários” relegados à própria sorte. Mais tarde, a globalização exige novo empenho do Estado para formação dos jovens e adultos, que dessa vez muito mais que para provê-los de “oportunidades” de emprego, o faz para que essa população possa ter acesso econômico e cultural  suficiente para o consumo das novas tecnologias.

Em outra frente, ganha força nos anos 50 e 60 a educação popular, concebida numa perspectiva de emancipação do trabalhador, que privilegia a formação humanista e cidadã e vai ao encontro dos jovens e adultos que necessitavam refletir e sistematizar os saberes advindos do seu trabalho e das formas de produção que testemunhavam. A educação popular pretende superar a desigualdade social, valorizar o saber do outro e construir coletivamente os conhecimentos,  transformando as relações sociais. Nesse sentido, ela reflete sobre a relação do homem com o trabalho e sua condição social.

Segundo  Gadotti (1999), desenvolver um projeto educativo popular é quase impossível sem  relacioná-lo ao trabalho e aos mecanismos de produção. Para que a educação  possa  ser  libertária  (FREIRE,  1979)  necessita  mirar  a  transformação  das relações sociais e a construção de outra organização econômica, que não se paute pela exploração  do  trabalhador.  A  economia  solidária   pode   ser  uma  alternativa  para construção  da  identidade  dos  jovens  e  adultos,  que  passam  a  vislumbrar  outra possibilidade para o trabalho e vida social.

Trata-se de, o diálogo possível de ser feito entre os conhecimentos e práticas educativas desses lugares do saber, não para contrapô-los ou distanciar suas realidades, mas    para    apontar    caminhos    para    o    desenvolvimento    da    educação    popular, transformadora das relações e viabilizadora de outra economia, outra concepção de mundo: mais democrática, mais justa, mais solidária.

1.3 Etapas do Estudo e Métodos

Nossa pesquisa se desenvolveu em três eixos principais:

1) Revisão de literatura sobre educação Popular e Economia Solidária e EJA e sistematização de dados sobre o perfil do CIEJA BT;
2) Desenvolvimento de Oficinas do CIEJA na Rua;
3) Análise dos dados e relato de experiência pedagógica.

As Oficinas do CIEJA na Rua foram planejadas, tendo-se como base o quadro de  ideias  elaborado  no  início  do  curso  “EJA  e  Economia  Solidária”.  Elas  foram desenvolvidas, com foco de nossa pesquisa,  como projeto piloto que abrange conteúdos e aulas já desenvolvidas pelo CIEJA BT na área de Ciências Humanas e Linguagens e Códigos,  e  foram  rearticuladas,  concentradas  e   aprofundadas,  tendo  a  Economia Solidária enquanto orientadora da ação pedagógica.

 

2. EJA: ENTRE O FUTURO APRISIONADOR E A CONSTRUÇÃO DA PRÁTICA LIBERTÁRIA

A Educação de Jovens e Adultos é consolidada entre os Direitos Humanos no artigo XXVI:  “Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais”.  Nesse sentido, a EJA deveria atender à demanda dos jovens, adultos e idosos,  atentando-se às condições e necessidades dos educandos, assim como estabelece a  Lei de Diretrizes e Bases 9.394/96 (LDB/96):

Art. 37. A educação de jovens e adultos será destinada àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental e médio na idade própria. § 1º Os sistemas de ensino assegurarão gratuitamente aos jovens e aos adultos, que não puderam efetuar os estudos na idade regular, oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as características do alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho, mediante cursos e exames.

Reconhecer  as  especificidades  dessa  modalidade  de  ensino  implicaria  em discutir quais seriam as “oportunidades educacionais apropriadas” para oferta da EJA e mesmo   em   relação   às   quais   intencionalidades   educativas   elas   seriam   ou   não “apropriadas”.  Ao  mesmo  tempo,   devemos  nos  questionar  em  que  medida  essa consideração das especificidades inerentes aos jovens e adultos, de fato, influencia as práticas educativas para essa parcela da população.

Verifica-se  que  a  noção  dessa  “apropriação”  pode  atrelar-se  à  ideologia hegemônica na sociedade; a depender das ideias em que se amparam as propostas para EJA, nos deparamos com a realização do ensino enquanto instrumento de reprodução da ordenação social existente ou de intervenção e transformação da mesma.

Além de procurar fixar seu modo de sociabilidade através de instituições determinadas, os homens produzem ideias ou representações pelas quais procuram explicar e compreender sua própria vida individual, social, suas relações com a natureza e com o sobrenatural. Essas ideias ou representações, no  entanto,  tenderão  a  esconder dos homens o  modo  real como  suas relações sociais foram produzidas e a origem das formas sociais de exploração econômica e de dominação política. Esse ocultamento da realidade social chama-se ideologia. Por seu intermédio, os homens legitimam as condições sociais de exploração e de dominação, fazendo com que pareçam verdadeiras e justas. Enfim, também é um aspecto fundamental da existência histórica dos homens a ação pela qual podem ou reproduzir as relações sociais existentes, ou transformá-las, seja de maneira radical (quando fazem uma revolução), seja de maneira parcial (quando fazem reformas). (CHAUÍ,1980, p.8-9) (Grifo nosso)

A ideologia neoliberal, que permeia a oferta de EJA nas escolas públicas do país, parece, então,  esconder “a origem das formas sociais de exploração econômica e de dominação política” das classes  populares. A escolarização fundamentada no centro dessa ideologia é capaz de, a um só tempo, diferenciar e isolar os homens e mulheres das  classes  populares,  os  responsabilizar  pelas  precariedades  que  vivenciam  e  os embalar numa promessa vazia de futuro com igualdade.

Nesse sentido, de acordo com a intencionalidade e o projeto de sociedade com que é engendrada a EJA, podemos encontrar práticas de ensino mergulhadas na vivência e expectativas dos jovens, adultos e idosos, ou totalmente alheias a elas, conferindo ao povo um papel pré-determinado na história e no desenvolvimento do país.

2.1 As intencionalidades que permeiam a oferta da EJA

A “apropriação” da EJA nas instituições escolares, tal como determina a LDB 9.394/96, pode estar referenciada num ideal de ensino compensatório e supletivo, que se desenvolve como “educação de massa”, em que sua oferta tem se amparado muito mais num projeto para sociedade  do futuro que na realidade dos homens e das mulheres presentes nos bancos escolares.

Ao considerarmos a história da EJA e a influência das políticas internacionais de desenvolvimento  para  formação  das  políticas  de  educação  nacional,  verificamos  a fixação da instituição escolar como viabilizadora de uma organização da sociedade em que as camadas populares  cumprem um “papel histórico”, sem que seus interesses e condições sejam propriamente  considerados,  muito menos tomados como base para construção das propostas de ensino.

Da queda do Estado Novo à década de 1960, as iniciativas educativas voltadas aos jovens e  adultos, inspiradas nos ideais do liberalismo europeu e nos interesses capitalistas para manutenção  de certa hierarquia social, desenvolveram-se segundo a intencionalidade  de  grupos  dominantes,  empenhados  em  definir  um  tipo  ideal  de homem adequado ao “desenvolvimentismo econômico”.

… a ideologia do desenvolvimento não é doação feita às classes populares, para que cada um absorva na medida de sua capacidade; pelo contrário, é transmutação que se opera na intimidade do homem em situação, e de que resulta a clarificação conceitual da representação que faz do seu status social e   da evolução histórica. É processo imanente, mas admite aceleração por influência exterior. Isto é que constitui a noção social de educação (…). Uma teoria da educação deverá surgir, cuja tarefa será a de definir o tipo de homem que se deseja formar para promover o desenvolvimento do país. Em função desse objetivo deverão ser revistos os atuais esquemas educacionais, a fim de que, sem abandonar o que seja aconselhável manter da tradição, se concentrem os esforços pedagógicos na criação de nova mentalidade. As gerações em crescimento deverão ser preparadas para a compreensão do seu papel histórico, na transição da fase porque está passando a sociedade brasileira, capacitando-se das suas responsabilidades no processo. (PINTO, 1959 apud BEISIEGEL, 1982, p. 55)

Essa modalidade de ensino vem sendo, então, sistematicamente submetida a regulamentações institucionais retrógradas, que recuperam esse sentido de educação para ratificar  uma  velha “nova mentalidade”: aquela em que a escolaridade significa degrau para a ascensão social, em que a história se constituiria como traço verticalizado em direção à evolução e em que as camadas populares já possuem “responsabilidades” delimitadas.

No sistema capitalista, a atuação das elites na condução do “povo” , sob sua pretensa homogeneização, se baseia nesse projeto de sociedade em que o homem seria ao mesmo tempo produto  das disposições de sua época e objeto moldável ao “papel histórico” para ele idealizado. A influência nas consciências e a “modelagem” do tipo de homem adequado para promover o desenvolvimento do  país são, contudo, papéis assumidos pela educação e diversas instituições sociais.

A educação, quando realizada segundo essa  intencionalidade, cumpre a função de controle social em que, pensada pela elite para instrução do “povo”, pode  ocultar certo ideal de organização social em que, muitas vezes, ela pretende manter sua posição privilegiada de “elite” e dar continuidade às relações de desigualdade existentes.

No entanto, se esse ideal de educação, forjado segundo o pensamento liberal, correspondia à  ampliação e diversificação das oportunidades de emprego no passado, atualmente responde à  emergência de novas formas de produção e seleção para as oportunidades  de  trabalho  cada  vez   mais  escassas.  As  políticas  neoliberais  que concebem  a  educação  enquanto  pressuposto  do   desenvolvimento  econômico,  no entanto, continuam reduzindo o processo educativo à mera  certificação para ocupar empregos formais, como se ela fosse um “passe livre” para a prosperidade individual e do país.

Convenientemente,  as  políticas  educacionais  que  emergem  das  orientações neoliberais  parecem  encobrir  que  o  desemprego  estrutural  é  inerente  ao  sistema capitalista.  Assim, a educação enquanto pressuposta da qualificação profissional atende aos interesses pela formação de mão de obra especializada e, muitas vezes, precária para ocupar os postos de base nas empresas e indústrias,  que desaparecem gradativamente com o surgimento de novas tecnologias. Cada vez mais, a educação é ofertada enquanto promessa  de  um  futuro  sem  desigualdades,  promessa  que  dificilmente  poderá  ser cumprida em meio a um sistema que se sustenta por mecanismos de exclusão social.

De outra  sorte,  na  década  de  1960,  observamos  nova  intencionalidade  para educação  do  povo  e o  engendramento  de novo  sentido  à EJA.    Num contexto  de movimentações na realidade socioeconômica do país, em que a economia de base rural progressivamente  cedia  espaço  à  economia  urbana  e  industrial,  a  educação  no pensamento e prática do Professor Paulo Freire ganhava novo contorno.

A  partir  de  pressupostos  comuns  para  emancipação  dos  trabalhadores,  a Educação  Popular despontou em iniciativas chamadas de “progressistas”, concebidas através de um conceito que  ultrapassava a mera crítica à instituição escolar enquanto instrumento de dominação ideológica ou  econômica (quando forma mão de obra) do Estado, para vislumbrar em seu interior um potencial de transformação social.

Com o golpe militar de 1964 essas iniciativas foram extintas, prevalecendo a fixação  da   educação  escolar  enquanto  instrumento   da  ordenação   da  sociedade capitalista. Elas legaram, porém, aprendizados e práticas que reverberaram em diversas propostas para educação de jovens e  adultos no Brasil desde a década de 1980, que procuravam atribuir à educação o sentido pautado  nas condições e interesses dessa população, cedendo espaço para seus próprios ideais e projetos para o futuro, tal como determina a LDB 9.394/96.

Não será possível, contudo, considerar a educação como prática libertária e transformadora  do quadro social, enquanto a atrelarmos às lógicas de mercado e ao enriquecimento  econômico,  que   significa  o  enriquecimento  de  uma  minoria  e  a manutenção da chamada “coesão social”. [1]

Do  mesmo  modo  a  educação  que  se  pretende  emancipadora  depende  do reconhecimento da diversidade dos sujeitos de direito da EJA, da pluralidade de seus interesses e condições, buscando sua participação e o diálogo entre eles e as propostas curriculares, de organização do espaço e tempo escolares.

2.2 O contexto do CIEJA Butantã: buscando a construção da escola de jovens e adultos

O Projeto CIEJA é uma das propostas de ensino que, inspirada no pensamento e prática educativa de Paulo Freire, pretendem transcender tempos, espaços e currículos marcados pelos interesses capitalistas na “educação bancária” para fomentar a educação popular e participação dos  homens e mulheres na construção da sociedade. É nesse sentido que os ideais da Economia Solidária vêm ao encontro dos princípios do Projeto para formação dos jovens, adultos e idosos.

Os CIEJAs tiveram origem no governo de Marta Suplicy (2001-2005) quando foram avaliados e reformulados os Centros Municipais de Ensino Supletivo (CEMES). Os CEMES, por sua  vez, foram idealizados durante o  governo de Luiza Erundina (1989-1992), período em que Paulo Freire era Secretário de Ensino do município de São Paulo, mas só passaram a funcionar na gestão de Paulo Maluf (1993-1996).

Funcionando  desde  2003,  os  CIEJAs  ofertam  a  EJA  de  forma  diferenciada dentro da rede municipal, possui Ensino Fundamental nos ciclos I e II, correspondente ao ensino regular do primeiro ao nono ano. O CIEJA visa oferecer melhores condições de acesso e permanência dos jovens e adultos na escola. O curso oferecido é presencial e organizado em quatro módulos com duração de um ano cada; o currículo integra três áreas  do  conhecimento:  Linguagens  e  Códigos,  Ciências  Humanas  e  Ciências  da Natureza  e  Matemática.  Além  disso,  o  CIEJA  oferece  Itinerários  Formativos  em Informática que assume o caráter de formação profissional, aliando a escolarização ao Trabalho.

As aulas, presenciais e obrigatórias, possuem 2h15 de duração, são distribuídas nos períodos matutino, vespertino e noturno, o que facilita a conciliação dos estudantes com as condições particulares de trabalho e responsabilidades familiares. Os estudantes podem frequentar também as Orientações de  Estudo para tirar dúvidas, aprofundar-se em algum tema, desenvolver ou participar de algum projeto diferenciado, ampliando ou compondo a carga horária.

Os horários de estudo flexíveis podem facilitar o acesso e permanência dos jovens  e  adultos  na  escola.  No  CIEJA  Butantã  a  equipe  técnica  é  composta  pela Coordenadora    Geral    e    Assistente    de    Coordenação,    Orientadoras    Pedagógicas Educacionais, Professores [2]  e Funcionários da rede municipal, que são designados para os cargos que ocupam nos  Centros. Com a designação, foi possível fixar por mais tempo seu quadro de profissionais dessa unidade, bem como integrá-lo com educadores cuja  prática  se  aproxima  dos  princípios  do  projeto.  Essa  fixação  do  quadro  de profissionais da equipe também propicia a construção coletiva das ações pedagógicas, sua avaliação, transformação ou manutenção ao longo dos anos.

Esses estudantes,  quando  questionados  sobre  os  motivos  que  os  levaram  a procurar o  CIEJA não raro mencionam que enxergam na escola uma condição para “melhorar  de  vida”  ou  “ter  uma  oportunidade  melhor  no  emprego”.  Há  também, sobretudo entre as mulheres, aqueles alunos que mencionam o retorno à escola como satisfação de um desejo pessoal.
Atualmente,  o  CIEJA  BT  possui  6  turmas  em  cada  um  dos  6  horários  de atendimento nos períodos da manhã, tarde e noite. De cada 6 turmas de um horário, 2 são de ciclo I: alfabetização  e pós-alfabetização. As turmas possuem em média 15 alunos e verificamos que os módulos de  alfabetização e pós-alfabetização possuem predominância de adultos e idosos.
Durante o ano, constatamos que os jovens, adultos e idosos passam por diversos desafios para continuarem estudando, muitas vezes, porque suas condições de trabalho e moradia são inconstantes e sofrem mudanças bruscas que impactam na organização de seus tempos na escola.

Nesse sentido, a organização do CIEJA com diferentes alternativas para assistir às aulas e participar das atividades pode facilitar muito a permanência dos estudantes na escola a despeito das dificuldades de ordens diversas que eles enfrentam.

3. EJA e Economia Solidária

Olho porque o mundo não tem igualdade. Por que a gente não tem coragem de falar como eles? Por que a gente não tinha autoridade? Por que o povo mais humilde não tinha a oportunidade de falar como alta sociedade?

A  EJA  tem  sido  concebida  nas  instituições  escolares  muito  mais  como conformadora das relações sociais, como responsável pela “civilidade” dos sujeitos ou por sua “domesticação”, que propriamente como centro potencial para reorganização da convivência entre grupos, para a reflexão sobre seus valores, para a crítica e inovação de técnicas, para a reconfiguração social.
A escola  constituiu-se  ao  longo  de  séculos  como  um  centro  opressor  dos costumes e valores destoantes do “desejável” ou “aceitável” para uma pequena parcela da sociedade, ao invés de ser palco em que as tensões entre a elite e a massa pudessem encontrar meios de se transformar em relações menos desiguais.

Desse modo, o que se observa da escola atual em modelos variados no mundo e mais especificamente no Brasil – tão ignorada e sucateada- é seu papel de submeter a formação humana  aos  interesses econômicos dos detentores dos meios de produção, louvar o individualismo para calar o grito das massas.

Quando se assume uma postura crítica frente às relações de troca construídas historicamente,  percebe-se que  na  era do  capitalismo,  o  valor  do  ser  humano  está reduzido ao quanto valemos, em  dinheiro, diante de um sistema que nos aliena, nos afasta do outro e de nós mesmos, a ponto de não nos incomodarmos em perder o sono, o sonho, a dignidade. É a falta do dinheiro e “status” conferidos por algumas profissões que retira a autoridade dos homens e mulheres, os impede de falar, de denunciar  a desigualdade vivida e buscar superá-la.

Homens e mulheres vendem, dia após dia, muito mais que seu tempo ou força de trabalho. Na  sociedade capitalista, eles têm vendido a convivência com quem lhes é caro, a autonomia e a liberdade. São máximas de nosso tempo que a culpa por sua “falta de    autoridade”    é    toda    sua,    que    não    conseguiram    embarcar    no    trem    do desenvolvimentismo econômico por pura incompetência, ou seja, pela falta de estudo. Estudo  a  que   não  tiveram  acesso  ou  não  puderam  frequentar  quando  estavam trabalhando,  que  nada  de  seu  lhes  comunicava  ou  anunciava.  Não  estudaram  o suficiente, não se esforçaram o suficiente, não inovaram a velha roda o suficiente, nem assumiram a “responsabilidade” ou “papel histórico” que lhes atribuíram.

A ideologia da competição chama atenção apenas para os vencedores, a sina dos perdedores fica na penumbra. O que acontece com os empresários e empregados das empresas que quebram? E com os pretendentes que não conseguem emprego? Ou com os vestibulandos que não entram na universidade? Em tese, devem continuar tentando competir, para ver se saem melhor da próxima vez. Mas, na economia capitalista os ganhadores acumulam    vantagens,    os    perdedores    acumulam    desvantagens    nas competições futuras. (SINGER, 2002, p. 8)

Nesse sentido, cabe à educação de jovens e adultos (EJA), antes que reforçar essa “ideologia  da competição” forjada, configurar um lugar em que essa ilusão seja desfeita. A EJA deve ser,  portanto, o lugar do encontro e não da consolidação de posições, o lugar da palavra viva, da  autonomia, da discussão, do estranhamento, do resgate   daquelas   vozes   tantas   vezes   acostumadas   a   costumes   que   nunca   lhes pertenceram.  A  EJA,  enquanto  educação  popular,  é  um  campo  em  que  se  pode, coletivamente, conceber o valor do ser humano enquanto sujeito histórico.

A  EJA   tomada   dessa   intencionalidade   transformadora   possui   saberes   e experiências acumuladas na Educação Popular, tal como concebida por Paulo Freire nos anos de 1960, bem como na Economia Solidária, tal como concebida por Paul Singer, que  vislumbra  uma  organização  econômica  popular,  voltada  para  os  interesses  e condições do povo e não à manutenção de uma elite no poder.

A Economia Solidária é também educativa para quem há muito naturalizou a violência da  exploração cotidiana. Ao reavaliar e criticar o modo como se concebe o “valor” de troca contido nas relações de trabalho capitalista, o valor assumido pelo ser humano frente ao lucro, ao projetar outra organização econômica possível, a economia solidária pode resgatar aquele estranhamento essencial para mudança.

A economia Solidária pretende, justamente, desmontar o ocultamento “daquelas relações de exploração e dominação dos homens” na ideologia capitalista, revelar atrás da aparencia “justa e  verdadeira” de sua lógica, a desigual e falsa promessa de um futuro a que nem todos pertencerão, mas sobreviverão apenas à margem.

Reconhecendo,  então,  como  cerne  da  desigualdade,  a  posse  dos  meios  de produção por  poucos, a competividade das relações econômicas, a concentração dos lucros nas mãos de uma minoria, a submissão das instituições sociais aos interesses do capitalista, a Economia Solidária propõe o desvelamento e transfomarção das bases da exploração do homem sobre o homem, devolvendo a ele a possibilidade de retomar a palavra, a autonomia, a posse dos meios de sua própria sobrevivência, de construir outra organização social.

O que importa entender é que a desigualdade não é natural e a competição generalizada tampouco o é. Elas resultam da forma como se organizam as atividades econômicas e que se denomina modo de produção. O capitalismo é um  modo  de  produção  cujos  princípios  são  o  direito  de  propriedade individual aplicado ao capital eo direito à liberdde individual. A aplicação destes princípios divide a sociedade em duas classes básicas: a classe proprietária  ou  possuidora  do  capital  e  a  classe  que  (por  não  dispor  de capital) ganha a vida mediante a venda de sua força de trabalho à outra classe. O resultado natural é a competição e a desigualdade. A economia solidária é outro modo de produção, cujos princípios básicos são a propriedade  coletiva  ou  associada  do  capital  e  o  direito  à  liberdade individual. A aplicação desses princípios une todos os que produzem numa única classe de trabalhadores que sãopossuidores de capital por igual em cada cooperativa ou sociedade econômica. O resultado natural é a solidariedade e a  igualdade,  cuja  reproduação,  no  entanto,  exige  mecanismos  estatais de redistribuição solidária da renda. (SINGER, 2002, p. 10)

Fundada no princípio da solidariedade, da cooperação entre os homens e entre as classes,  o  projeto  para  sociedade  da  Economia  Solidária  não  apenas  é  pautada  na idealização do futuro, mas na ação dos homens e mulheres do tempo presente. Mais do que reconhecer a origem da desigualdade e compreender as marcas que carregam dela, as classes populares, assim como as elites, são postas  na posição daquelas pessoas cuja liberdade não se submete à propriedade ou a um futuro pré-concebido, mas constroem, a partir da intervenção no mundo presente, outras relações sociais.

A    economia    solidária    ratifica,    então,    a    solidariedade    não    como    o assistencialismo, mas como a cooperação, a primeira palavra se origina de uma postura passiva “assistir”, a segunda de uma postura ativa cooperar. Além disso a operação não será de poucos, de uma elite para o povo, mas sim uma atitude que implica o  com, o fazer junto. É nesse sentido que a economia solidária ao mesmo tempo em que concebe o  indivíduo  em  seu  lugar  de  autor,  reconhece  a  autoridade  não  apenas  da  “alta sociedade”, mas também dos “humildes”, desfazendo a desigualdade de suas posições.

Assim, abre-se espaço para que a realidade seja constituída pela junção  e não justaposição de intencionalidades na sociedade democrática, em que assim como Paul Singer (2002) escreve  “Ninguém manda em ninguém”, do mesmo modo como Paulo Freire (1987) também anunciava que  “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados  pelo mundo. Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho; os homens se libertam em comunhão”.

4.  EDUCAÇÃO POPULAR E EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: POR UMA PEDAGOGIA DA PARTICIPAÇÃO POPULAR

4.1 O papel da educação para nova classe média

Num cenário de ampliação do valor do indivíduo frente ao coletivo, de validação da meritocracia enquanto pressuposto de justiça e ascensão social, toma, então, cada vez mais importância a intervenção na formação da consciência individual, ou seja, a sua educação.

Wright  Mills  (1976)  descreve  as  movimentações  sociais  que,  no  bojo  do capitalismo  moderno, permeiam mais  que a realidade econômica das  pessoas, pois passam a se infiltrar também em sua esfera psicológica e relações interpessoais. Embora focando a realidade estadunidense, sua obra, “A nova classe média” (1976), aborda o papel das instituições sociais na formação do homem e pode iluminar a compreensão dessas modificações na sociedade brasileira e seu reflexo no cenário da educação.
Mills (1976) descreve o surgimento de uma nova classe média – os “colarinhos brancos” – como denominou. Imbuídos da ilusão de se tornarem “colarinhos brancos”, os  homens  relegariam  o  futuro  à  sorte  do  mercado.  Embalados  no  mesmo  sonho americano “à brasileira”, eles procuravam participar das movimentações de sua época.

 

Coletivamente, [os colarinhos brancos] são mais lastimáveis do que trágicos, lutando contra uma inflação anônima, sustentando até mesmo na miséria a esperança de uma rápida ascensão à americana. Eles são impelidos por forças que não podem controlar, arrastados por movimentos que não compreendem; metem-se em situações nas quais a sua posição é a mais desamparada. O homem de colarinho branco é o herói vítima, a criatura modesta que sofre a ação, mas não age, que trabalha desapercebida num escritório ou numa loja, que jamais levanta a voz, jamais retruca, jamais toma uma posição (…) Esses tipos americanos não foram construídos pela reunião de dados da experiência vivida. Como em outros países, foram elaborados a partir da tradição, dos manuais escolares e das divagações de espíritos simplórios. Foram reforçados e mesmo criados, especialmente em nossa época, pelo mecanismo das diversões populares e das comunicações de massa. (Mills, 1976, p.14-15)

Mills ratifica o papel das “diversões populares”, mídia e educação na formação dos colarinhos brancos por meio do que parece delinear-se como uma cultura de massa. Refere-se aos homens, crente na submissão dos mesmos ao seu tempo, ratifica seu papel restrito a objeto “impelido por forças que não consegue controlar”, desacredita em sua atuação individual e, sobretudo coletiva, aponta, assim, que não encontra neles mesmos um modo de libertá-los, mas antes de se submeterem docilmente a  “movimentos  que não compreendem”.

4.2 Paulo Freire e a Participação Popular

De outra sorte que nos apontamentos de Mills (1976), a conscientização das mulheres e dos  homens através do ato pedagógico ocupa nos trabalhos do Professor Paulo Freire um papel com potência libertadora. Empenhado em conceber a educação que não fosse mera estratégia de reprodução das relações sociais, ou apenas conduzisse os indivíduos como objetos, Freire apostava nos educandos não apenas como receptores ou “instrumentos” de um projeto de futuro, nem somente como reflexos dele, mas sim como elementos potencialmente interventores no mesmo porque eram seres reflexivos.

Há uma pluralidade nas relações do homem com seu mundo na medida em que responde aos desafios desse mesmo mundo em sua ampla variedade. Em que não se esgota num tipo padronizado de resposta. A sua pluralidade não é só em relação aos diferentes estímulos que lhe emite o contexto, mas em relação ao mesmo estímulo. No jogo constante de suas respostas, altera-se no próprio ato de responder. Organiza-se. Escolhe a melhor resposta. Testa-se. Age. Faz tudo isso com a consciência de quem usa uma ferramenta. (…) A captação que faz dos dados objetivos, de sua realidade, como dos laços que prendem um fato ou dado a outro, é ontologicamente crítica, por isso reflexiva, e não puramente reflexa como bem cabe à esfera dos contactos. (FREIRE, 1963, p.5)

Essa ação dos homens, como revelam os primeiros trabalhos de Freire, partia do pressuposto de  que eles não eram apenas “seres de contato” como explicita a citação acima, mas de “relações”, não  eram apenas objetos do fazer educativo ou arrastados pelas disposições da realidade de seu tempo, mas poderiam ser eles próprios os sujeitos das ações que também os constituíam. Freire contrapõe a  “esfera de contatos”, que implica na acomodação dos homens à cultura e história, com a “esfera de relações”, em que os homens interagem com seu tempo e cultura, recriando-os.

A    educação    dos    jovens    e    adultos,    então,    enquanto    instrumento    de conscientização da mulher e do homem, assumiria certa função de fomentar essa sua condição de “agente” na sociedade, ao invés de submetê-lo enquanto indivíduo disperso na  massa.  Relacionando-se  com  a  realidade,  os  atores  poderiam  se  transformar  e transformá-la.

Os caminhos que as práticas educativas percorriam apontavam não para o futuro enquanto dado pré-concebido, mas para uma realidade em suspenso, a ser construída. A proposta  educativa  de  Freire   guiava-se  pela  formação  de  um  tipo  humano  cuja personalidade  fosse  democrática,  não  do   homem  ideal  para  o  “desenvolvimento econômico do país”.

A formação  da  personalidade  democrática  dos  seres  humanos  prescindiria, como explicitamos, de sua participação na sociedade não apenas enquanto objetos, mas enquanto aqueles que agem, criam e recriam. Essa reflexão de Freire sobre o que seria a participação das camadas populares na configuração da nova sociedade, ao contrário do que apresenta Mills (1976),  apostava que os homens e mulheres pudessem escapar à condição  massificadora,  receber   criticamente   os  dados  objetivos  da  realidade  e reformulá-los ao se relacionarem com ele, ao invés de se acomodarem nele.

Desse  modo,  o  notável  educador  desenvolveu  reflexões  centrais  para  a participação ativa dos homens em seu tempo quando se referia à cultura e ao diálogo enquanto pressupostos da formação da  personalidade democrática.

 

Observe-se ainda, a partir destas relações do homem com a realidade e nela, criando, recriando, decidindo, que ele vai dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade externa. Vai acrescentando a ela algo de que é mesmo  o  fazedor.  Vai  temporalizando  os  espaços  geográficos.  Faz cultura. E é ainda o jogo dialético de suas relações – com que marca o mundo  refazendo-o  e  com  o  que  é  marcado  –  que  não  permite  a “estaticidade” das sociedades nem das culturas. (…) Encontrava-se então o povo na fase anterior de fechamento de nossa sociedade, imerso no processo. Com  a  rachadura  e  a  entrada  da  sociedade  no  Trânsito,  emerge.  Se  na imersão era puramente espectador do processo, na emersão, descruza os braços e renuncia à espectação e exige a ingerência. Já não se satisfaz em assistir. Quer participar. Quer decidir. E o faz. Deixa de ser objeto para ser sujeito. (…) Instala-se então, em pleno Trânsito o fenômeno que Mannheim chama de “Democratização fundamental” que implica em uma crescente e irreversível ativação do povo no seu próprio processo histórico. É esta democratização fundamental que se abre em leque, apresentando dimensões interdependentes – a econômica, a social, a política e cultural – que caracteriza a presença participante do povo brasileiro, que no estágio  anterior  não  existia.  Sem  passado  de  experiências  decisórias, dialogais, emerge o povo em rebelião. A aceitação do povo em posição participante é uma atitude de quem é do Trânsito, oposta à de quem apenas esteja no Trânsito, considerando indébita esta participação. O primeiro será progressista – o segundo reacionário. (FREIRE, 1963, p. 5-8) (grifo nosso)

O educador apostava, então, que essa integração dos homens ao Trânsito, como designava as mudanças sociais de sua época, poderia se realizar por meio do trabalho educativo de conscientização popular.

Se para Vieira Pinto (1951) essa consciência construía-se em grande parte já pela inserção do indivíduo na sociedade moderna, pela “força imanente” ratificada em seu  contato  com  as  transformações  da  época,  Paulo  Freire  parecia  reconhecer  que apenas ela não seria suficiente, pois poderia carregá-lo no Trânsito ao invés de permitir que ele fosse no Trânsito.

Se para alguns de seus contemporâneos a educação popular seria uma influência exterior para  aceleração da conscientização do povo, para Freire, a conscientização implicava  as  trocas,  o  diálogo,  a  interação  do  homem  com  sua  circunstância,  seu posicionamento enquanto sujeito.  Apostava que o homem “relacionando-se” com seu tempo, como produtor de cultura, não se conformaria nele, não estaria nele, mas seria nele participando de seu engendramento. É nesse sentido que a educação popular, mais do que delegar  um papel histórico aos indivíduos das camadas populares, abria-se à reformulação desse papel pelos sujeitos.

Marcadamente, o notável educador empreendera sua pesquisa e prática de forma comprometida  com  o  diálogo,  como  método  de  alfabetização  e  “conscientização” popular,  de modo a refletir sobre a riqueza da palavra, sua centralidade na estruturação do pensamento e sua potencialidade formadora de ideias, e porque de (re)formadora de ideias, também (re)construtora de realidades.
Daí que a centralidade da contemplação da palavra prescindisse da leitura de mundo e que a leitura de mundo pudesse ser enriquecida pela leitura da palavra. Assim também que o indivíduo deixaria de receber a cultura como aquilo que lhe é distante e alheio, para se conceber integrante dela, produtor dela. Dessa forma, na singularidade estaria pluralidade de relações e, portanto, de possibilidades de participar da história.

Freire  opunha-se,  então,  à  educação  estática  e  verticalizada,  à  “educação bancária”, bem  como seu método se opunha à mera condução de um povo estático. Desse modo, em seus trabalhos, encontramos o sentido que a educação popular assume não apenas para a mobilização das classes populares, como também para participação do povo na sociedade democrática.

Weffort,  no  prefácio  da  obra  do  educador  “Educação  como  prática  da liberdade”  (1969),  reconhece  que  as  motivações  de  Freire  assentavam-se  mais  no trabalho educativo que na ação política. Ao mesmo tempo, Weffort apontava que para além da própria formulação do educador sobre o povo, estava essa mesma potência de conscientização política em sua prática pedagógica baseada no diálogo, no aprendizado coletivo pela apreciação das palavras geradoras; palavras vivas na realidade popular e
recriadas nos Círculos de Cultura [3].

Seria, pois, essa pedagogia da participação na leitura do mundo e das palavras que    possibilitava    que    dos    homens    e    mulheres    então    presentes    emergisse    o reconhecimento de si próprios, de sua condição de oprimidos, de sua necessidade de luta pela liberdade. Assim, relacionando e recriando sentidos, reconhecendo a luta que as palavras encobriam, é que Freire e o povo conscientizavam-se de que aquela também poderia ser sua própria luta.

 

Paulo Freire diz com clareza: educação como prática da liberdade. Trata-se, como  veremos, menos de um axioma  pedagógico que de um desafio da história  presente.  Quando  alguém  diz  que  a  educação  é  afirmação  da liberdade  e toma as palavras a sério  — isto é, quando as toma por sua significação real — se obriga, neste mesmo momento, a reconhecer o fato da opressão, do mesmo modo que a luta pela libertação. (…)Teoria e denúncia se fecundam mutuamente do mesmo modo que nos círculos de cultura, o aprendizado ou a discussão das noções de “trabalho” e “cultura” jamais se separa de uma tomada de consciência, pois se realiza no próprio processo desta tomada de consciência. E esta conscientização muitas vezes significa o começo da busca de uma posição de luta. A compreensão desta pedagogia em sua dimensão prática, política ou social, requer, portanto, clareza quanto a este aspecto fundamental: a ideia da liberdade só adquire plena significação quando  comunga  com  a  luta  concreta  dos  homens  por  libertar-se.  Isto significa que os milhões de oprimidos do Brasil — semelhantes, em muitos aspectos, a todos os dominados do Terceiro Mundo — poderão encontrar nesta concepção educacional uma substancial ajuda ou talvez mesmo um ponto de partida. (WEFFORT, 1969, p. 6-8)

De fato,  em  produções  posteriores,  Freire  (1987)  apresenta  a  divisão  entre oprimidos e opressores, como verificamos na obra “Pedagogia do Oprimido”(1987). Como bem aponta Weffort, sua prática também o conduz à recriações sobre a própria teoria. O lugar central concebido ao diálogo possibilitara que a leitura de mundo e os sentidos das palavras emergissem encharcados daquelas vivências próprias das classes populares marcadas pela desigualdade.

Dessa maneira,  ao  mesmo  tempo  em  que os  indivíduos  reconheciam  traços comuns em  sua  condição social e podiam passar a compor um coletivo, Paulo Freire reconhecia no reconhecimento dos outros as contradições entre as classes sociais, que não mais poderiam ser  ocultadas.  Em  Pedagogia da Esperança (1992), o próprio educador reconhece que o diálogo com as mulheres e os homens do povo provocara-lhe modificações na teoria e prática, quando se refere à  fala  de um trabalhador que o impeliu, durante uma reunião, a revê-las:

Nas idas e vindas da fala, na sintaxe operária, na prosódia, nos movimentos do corpo, nas mãos do orador, nas metáforas tão comuns ao discurso popular, ele chamava a atenção do educador ali em frente, sentado, calado, afundando em sua cadeira, para a necessidade de que, ao fazer seu discurso ao povo, o educador esteja a par da compreensão de mundo que o povo esteja tendo. (…) O fato de jamais haver esquecido a trama em que se deu aquele discurso é significativo. O discurso daquela noite longínqua vem se pondo diante de mim como se fosse um texto escrito, um ensaio que eu devesse constantemente revisitar. Na verdade, ele foi o ponto culminante no aprendizado há muito iniciado – o de que o educador ou educadora progressista, ainda quando, às vezes, tenha que falar ao povo, deve ir transformando o ao em com o povo. (FREIRE, 1992, p. 9)

O método do Paulo Freire, então, o lançava cada vez mais à frente de sua própria teoria por meio de sua experimentação e prática. Aqueles primeiros conceitos sobre a cultura, em que os homens eram reconhecidos como criadores e recriadores do mundo, aquelas  primeiras  apostas  no  diálogo  permitiriam  a  reconstrução  constante  do  seu próprio pensamento.

A  educação  de  jovens  e  adultos  ganhava  novos  sentidos,  seja  porque  se reconhecia a condição dos oprimidos, seja porque conferia a possibilidade de que eles não apenas consumissem a  cultura de massa, mas se reconhecessem produtores da cultura   popular,   de   que   participassem   ativamente   na   construção   da   sociedade democrática.

Assim, distingue-se o pensamento de Paulo Freire daqueles primeiros analisados sobre  a  educação  baseada  nos  interesses  capitalistas,  ela  não  poderia  ser  mais  a educação para o povo, mas sua realização implicaria uma educação com o povo. Mais ainda, o povo não era “massa” uniforme. O povo eram os oprimidos.

A educação passava, então, a se comprometer com a libertação dos oprimidos segundo o  projeto de futuro sonhado com eles e não para eles, projeto que com a revelação das contradições poderia apontar não mais para a continuidade das relações sociais existentes, mas para sua transformação. Contudo, o sentido da educação popular para Paulo Freire era enriquecido pelo fazer  com  as classes populares, permeado por suas experiências e lutas e, por isso mesmo, tomado de esperança.

Fazendo-se e refazendo-se no processo de fazer a história, como sujeitos e objetos, mulheres e homens, virando seres da inserção no mundo e não da pura adaptação ao mundo, terminaram por ter no sonho também um motor da história. Não há mudança sem sonho como não há sonho sem esperança. Por isso, venho insistindo, desde a Pedagogia do Oprimido, que não há utopia verdadeira fora da tensão entre a denuncia de um presente tornando-se cada vez  mais intolerável  e  o  anúncio  de um  futuro  a  ser  criado,  construído, política, estética e eticamente, por nós, mulheres e homens. A utopia implica essa denúncia e esse anúncio, mas não deixa esgotar-se a tensão entre ambos quando da produção do futuro antes anunciado e agora um novo presente. A nova experiência de sonho se instaura, na medida mesma em que a história não se imobiliza, não morre. Pelo contrário, continua. (…) Na verdade toda vez  que  o  futuro  seja  considerado  um pré-dado, ora porque seja  a  pura repetição mecânica do presente, só adverbialmente mudado, ora porque seja o que teria de ser, não há lugar para utopia, portanto, para o sonho, para a opção, para decisão, para a espera na luta, somente como existe esperança. Não há lugar para educação. Só para o adestramento. (FREIRE, 1992, p.41)

No pensamento e prática de Paulo Freire se nega a “educação bancária”, não haveria traços verticais da história, mas círculos de cultura, em que não havia o aluno – aquele a quem falta a luz –, mas  o participante  ativo da construção do conhecimento, da  cultura  e  da  história.  A  educação  popular  ancorava-se  na  possibilidade  de  que homens e mulheres pudessem tomar a palavra, dotá-la de sentidos próprios, descobrir nela as lutas encobertas e tê-la como chave de sua luta.

O método  Paulo  Freire,  ao  conceber  relevância  à  subjetividade  atrelada  ao diálogo, que troca, reelabora e acrescenta sentidos aos indivíduos, criara a possibilidade de  que  a  educação,  tomada  da  intencionalidade  de  quem  a  promovia,  pudesse  ser também mergulhada na intencionalidade e vivência daqueles para quem era dirigida e, assim, pudesse também se transformar.

No método  de  alfabetização  empreendido  por  Freire,  desde  a  escolha  das palavras  geradoras, até a leitura compartilhada das mesmas, os homens e mulheres poderiam se descobrir  também donos das palavras, donos de suas ações. Produtos e produtores do mundo e do tempo em que viviam, engajar-se-iam no futuro que não lhe seria dado como fatal Destino, mas que empreenderiam com esperança.

A contribuição do pensamento do Professor Paulo Freire para as iniciativas educativas voltadas aos jovens, adultos e idosos de sua época é incontestável. A prática do  diálogo,  o   reconhecimento  dos  sujeitos  como  produtores  de  cultura  e  sua conscientização foram pontos centrais de diferentes propostas educacionais nos anos de 1960.

Intelectuais  de  diferentes  movimentos  sociais,  da  esquerda  católica  aos militantes do  Partido Comunista, influenciavam e eram influenciados por Freire na concepção e prática de variadas iniciativas educativas, como o Movimento e Educação de Base (MEB), os Centros Populares de  Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE)  e  o  Movimento  de  Cultura  Popular  (MCP)  de  Recife.  Essas  experiências educativas fomentavam a participação popular na construção da sociedade democrática e ganhavam força com a ascensão de governos progressistas ao poder.

De fato,  a  Educação  Popular  também  passou  a  ser  pensada  como  lugar  de aproximação  entre as elites intelectuais e as massas, bem como lugar de mobilização política, como verificamos no Movimento Popular do Recife (MCP).

 

O movimento popular não gera um gera um movimento cultural qualquer. Gera,  precisamente,  um  movimento  de  cultura  popular.  Os  interesses culturais do movimento popular têm, portanto, um caráter específico: exprimem a necessidade de uma produção cultural, a um só tempo, voltada par as massas e destinada a elevar o nível de consciência social das forças que integram, ou podem vir a integrar o movimento popular. A demanda por uma consciência popular adequada ou real e possuída é característica do movimento popular porque este se assenta nas três seguintes proposições: a) Só  o  povo  pode resolver  os  problemas  populares;  b)  Tais problemas  se apresentam como uma totalidade de efeitos que não podem ser   corrigidos senão pela supressão de suas causas vigentes; c) O instrumento que efetua a transformação projetada é a luta política guiada por ideias que representam adequadamente a realidade objetiva. (GOES, 1985, p.24-25)

 

Marcadas as diversidades das intenções e projetos nessas propostas educacionais de cunho progressista verifica-se, no entanto, que elas passavam necessariamente pela crítica à realidade experimentada pela população ao invés de sua acomodação. Uma de suas  grandes  contribuições  à   EJA  é,  sem  dúvida,  o  confronto  com  o  chamado “conhecimento historicamente acumulado” e a aproximação entre as práticas educativas e cultura popular.  Esse confronto fora pertinente e profícuo não para reduzir o ensino às experiências imediatas dos estudantes, mas para reconhecer e criticar  lucidamente o crivo com que se acumula e transmite o conhecimento, privilegiando certos projetos e visões de mundo em detrimento de outros.

Nesse sentido, as propostas de Educação Popular, tal qual preconizada por Freire e essas  iniciativas recuperavam o valor da educação para inclusão e participação das camadas populares nos  rumos da história, para seu posicionamento crítico e criativo, para o fortalecimento do espírito democrático.

5. PRÁTICAS PEDAGÓGICAS

6. CONCLUSÃO:  PERSPECTIVAS  PARA  O  DIÁLOGO  ENTRE  EDUCAÇÃO  POPULAR  E ECONOMIA SOLIDÁRIA NA EJA

São muitas as congruências nas intencionalidades com que se desenvolvem as iniciativas educativas nos empreendimentos solidários e na Educação Popular, como a imprescindibilidade de mobilização e participação ativa dos educandos no processo de ensino aprendizagem, a aproximação  de suas experiências no trabalho e vida social concebendo-os  como  produtores  de  cultura,  o  reconhecimento  de  sua  diversidade, condições   e   interesses,   o   desenvolvimento   da   consciência   crítica,   do   espírito democrático e transformador da realidade.

A partir da análise do documento final da I Oficina de Formação de Formadores em Economia  Solidária, que reuniu em cinco eixos temáticos algumas proposições, dificuldades e encaminhamentos que apontam para entraves para concretização dessas intencionalidades  nos  projetos  educativos,   desenvolvemos  o  diálogo  com  nossa experiência no Projeto CIEJA na Rua.
Nesse sentido, é importante considerar alguns pontos levantados no documento e em nossa experiência nesse estudo para a configuração de um projeto de formação que propõe dar voz à experiência individual ou de um grupo, observar suas especificidades nos modos de conhecer ou  operar  no espaço social, ou seja, que se constitui como educação democrática.

Destacamos algumas delas abaixo:

Contribuições

  • As iniciativas de formação analisadas indicam a necessidade de utilizar uma linguagem que seja clara e objetiva para todos, como no exemplo citado com a presença de glossarista, que esclarece sobre o significado das palavras dentro do grupo.
  • Flexibilidade nos conteúdos da formação abrindo a contribuição coletiva do conhecimento, como técnicas de grupo e tendo como base a experiência completa dos envolvidos. Percurso formativo desencadeado a partir da realidade do empreendedor, tendo a prática como ponto de partida do processo, e o resgate das histórias de vida como impulsionadora da formação.
  • Desenvolver potencialidades de cada participante independentemente da escolaridade.

Limites e Dificuldades

  • Baixa    escolaridade    dos    empreendedores    e dificuldades  dos  formadores   em  utilizar   outras técnicas (mais ilustrativas nos materiais didáticos).
  • É preciso considerar o aspecto da subjetividade e o tempo de cada um dos trabalhadores.
  • A dificuldade de superação da cultura da subordinação que limita os processos formativos autogestionários. A cultura dominante dificulta a autogestão já que as pessoas estão acostumadas com lógicas diferentes da Economia Solidária (patrão/propriedade privada).

Os apontamentos do quadro, compilados no documento analisado, trouxeram à tona,   contribuições  e  dificuldades  das  práticas  formativas  em  empreendimentos solidários que também estão nas unidades escolares e outros espaços de formação. Nota-se,  justamente, a pretensão de que a formação seja, de fato, configurada pelos sujeitos envolvidos e não sobreposta a eles.  Isso não significaria abandoná-los à própria visão de mundo ou limitá-los aos saberes que já possuem, significa que o aprendizado pode ser constituído pelo diálogo, pelo interesse em  saber  mais, pela vinculação do sujeito ao objeto de estudo, por sua mobilização.
A partir das propostas e dificuldades expostas no documento e acima transcritas tecemos algumas considerações.

“As iniciativas de formação analisadas indicam a necessidade de utilizar uma linguagem que seja clara e objetiva para todos”

Destaca-se  neste  ponto,  que  a  língua  é  uma  construção  sociocultural,  desse modo,  compreender a linguagem, ou mais propriamente o vocabulário utilizado em contextos específicos do trabalho, é acessar um modo de ver o mundo e comunicá-lo.  A utilização da linguagem clara e objetiva, como apontaram os movimentos de Educação Popular de 1960, exige a reflexão sobre os modos  próprios de comunicar das classes populares, do reconhecimento de sua linguagem e de seu universo vocabular, não como ponto final das estratégias pedagógicas, mas como ponto de partida para reflexão crítica e apreensão de outras variedades linguísticas. É nesse sentido, que na experiência de Paulo Freire em Angicos, os educadores pesquisavam o vocabulário usado pelo povo, as palavras relacionadas ao seu universo de relações sociais e econômicas.

Assim,  mais  do  que  a  presença  do  “glossarista”  como  tradutor  dos  termos estrangeiros  ao mundo daqueles trabalhadores em formação, a leitura desses mesmos termos prescinde de uma  compreensão sobre o mundo  que simboliza.  Lembramos, então, que a comparação entre língua  culta  e coloquial, o prestígio social de cada variedade,  as  mudanças  da  língua  nos  diferentes  meios,  situações  e  tempos  são discussões também formadoras, que tratam da língua não apenas enquanto instrumento de comunicação que alguns dominam “bem” ou “mal”, mas como construção cultural.

Lembra-se,  a  esse  respeito,  a  construção  do  questionário  para  mulheres  no Projeto CIEJA na RUA. Ao responder questionários na internet, antes de sistematizar as perguntas do próprio do grupo, nos deparamos com termos distantes da realidade dos estudantes. Nesse momento, procurávamos ler as palavras através do contexto em que estavam inseridas, discutimos, por exemplo, quem eram seus autores, quais eram suas intenções, a quem se dirigiam as perguntas, que informação pretendiam colher, que ideia prévia os autores tinham a respeito do público que responderiam as perguntas etc.

Desse  modo,  fora  possível  perceber  que  aquela  linguagem  “formal”,  aquela utilização de  palavras próprias do contexto de formulação de políticas, atrelava-se a identidade de seus autores, bem como a do público que desejariam atingir. A questão do prestígio daquela modalidade da língua  atrelava-se também à credibilidade almejada para a pesquisa, deixando claro que a aproximação de termos e palavras consideradas como mais ou menos cultas socialmente, também se relacionava com o valor atribuído aos grupos sociais que a utilizavam.

Além  disso,  durante  a  sistematização  das  perguntas  formuladas  pela  turma, constantemente  buscamos  a  clareza  e  objetividade  para  facilitar  a  leitura  entre  as pesquisadas, além de contrapor padrões da língua falada com padrões da língua escrita, pudemos  pesquisar  palavras  e  termos  utilizados  em  contextos  próximos  daquelas mulheres que responderiam o questionário.

Dessa forma, mais do que a “descoberta” dos significados de termos estranhos ao cotidiano  dos educandos, a discussão sobre os sentidos que as palavras encobrem para além da semântica  possibilita não a substituição vocabular dos grupos, nem a sobreposição da língua culta à língua coloquial, mas justamente a manipulação daquela primeira em contextos específicos, de maneira consciente e crítica sobre a necessidade socialmente construída de utilização de uma e não outra variedade da língua.

Flexibilidade nos conteúdos da formação abrindo a contribuição coletiva do conhecimento, como técnicas de grupo e tendo como base a experiência completa dos envolvidos. Percurso formativo desencadeado a partir da realidade do empreendedor, tendo a prática como ponto de partida do processo, e o resgate das histórias de vida como impulsionadora da formação.

Desenvolver potencialidades de cada participante independentemente da escolaridade.

Essas duas contribuições apontadas no documento citado, referem-se justamente à  necessidade  de  que  o  processo  de  ensino  aprendizagem  não  focalize    intenções unicamente pertencentes aos seus propositores, mas que agregue as necessidades de formação daqueles para quem se dirigem as práticas educativas. Dessa forma, traçar um percurso  educativo  com   e   não  para  os  educandos  possibilita  não  apenas  seu envolvimento com os processos de aprendizagem, mas principalmente que os sentidos de aprendizagem possam ser construídos coletivamente. Isso implica, em conhecer os sujeitos em formação, seu olhar sobre o mundo, sua forma de estar nele.

Na sociedade capitalista, em que os sentidos do aprender reduzem-se, muitas vezes, a conseguir um emprego, refletir sobre os porquês da aprendizagem recupera o valor da educação  enquanto lugar de construção da identidade, transmissão cultural e inovação do conhecimento humano, ao invés de mera reprodução de saberes próprios de um grupo, saberes intocáveis, distantes de crítica ou inexoráveis.

É nessa direção que buscamos, desde o início, desenvolver o projeto CIEJA na Rua a partir do estranhamento do olhar dos próprios estudantes sobre sua realidade, a partir da crítica aos  contextos  do território  em  que se inseriam,  dos  seus  próprios interesses de compreender como e por  que seu lugar e suas relações se configuraram assim,  a  partir  de  suas  intenção  de  intervenção  e  mudança.  Importava-nos  que  os estudantes  percebessem  que  “o  mundo  não  é,  está  sendo”   (Freire,  1979),  que compreendessem por que  ele está sendo assim e vislumbrassem um modo de agir para que possa ser como desejam.

A dificuldade de superação da cultura da subordinação que limita os processos formativos autogestionários. A cultura dominante dificulta a autogestão já que as pessoas estão acostumadas com lógicas diferentes da Economia Solidária (patrão/propriedade privada).

Nesse ponto, nos parece mais pertinente a discussão desenvolvida anteriormente sobre as  intencionalidades das propostas educativas. Falar em autogestão pressupõe a não imposição de  modelos preconcebidos, nem de negação ou adaptação da cultura dos sujeitos participantes de uma prática educativa ou solidária. Ao contrário, pressupõe a crítica  e  adesão  a  um  projeto  comum,  que  parte  sim  de  percepções  e  costumes individuais mediatizados no diálogo com um ideal coletivo.

No projeto CIEJA na Rua, a todo momento confrontamos diferentes modos de pensar e se comportar, diferentes objetivos e propostas para as atividades. Procuramos, porém,   antes   de   rotulá-los   como   mais   ou   menos   autônomos,   adequados   ou democráticos,  submetê-los  à análise  crítica do  grupo. Partimos  do  pressuposto  que aprender, como citamos, é um verbo de ação dependente do desejo subjetivo. Mediar as propostas e maneiras de se comportar diante dos problemas levantados e dados colhidos não foi tarefa fácil durante o projeto, mas só foi possível porque os alunos se abriram para o diálogo, se dispuseram e desejaram fazer parte daquele grupo, puderam propor e modificar  aquilo  que  nele  lhes  parecia  conveniente  mudar,  se  responsabilizaram coletivamente por  fazer funcionar suas próprias propostas, puderam aprender com os erros e rever caminhos.

Assim, se é certo que a cultura hegemônica é entrave para o desenvolvimento de nova cultura, também é certo de que ela só pode ser superada na medida em que se reconheça o quanto cada um se guia por ela, se constitui enquanto sujeito a partir dela, para então analisar o quanto dela deve permanecer, o quanto  dela deve se transformar, o quanto dela deve se abandonar. Desse modo, a autogestão pressupõe o  reconhecimento da identidade individual e coletiva, o diálogo entre o privado e particular, a adesão a um modo próprio e genuíno de gerir, construída com e pelos sujeitos, não para eles se adaptarem.

Baixa escolaridade dos empreendedores e dificuldades dos formadores em utilizar outras técnicas
(mais ilustrativas nos materiais didáticos).
É preciso considerar o aspecto da subjetividade e o tempo de cada um dos trabalhadores

Destaca-se  na  elaboração  desse  documento  a  implicação  de  que  o  projeto educativo não seja construído como qualquer espécie de manual ou receita, nem que se vincule a concepções ou  práticas verticalizadas do processo de ensino-aprendizagem. No entanto, ainda são postos enquanto desafio a baixa escolaridade e a dificuldade de utilizar técnicas ilustrativas nos materiais didáticos.

Nesse  sentido,  observamos  que  o  Projeto  CIEJA  na  Rua  pôde  escapar  a estruturação de uma metodologia rígida que controla passo a passo, ou aula a aula, por um   caderno   didático,   ou   por   um   programa   pré-estabelecido   unicamente   pelos educadores. Nem por isso, deixamos de desenvolver uma metodologia rigorosa, que se orientava  por  eixos  pelos  quais  obrigatoriamente  iriamos  passar  em  cada  semestre (mapeamento, sistematização de dados e intervenção), por objetivos que guiavam nosso fazer  e  pela  tríade  “sensibilizar,  (re)conhecer  e  intervir/agir”,  método  que   dava coerência às atividades.

A metodologia que buscamos desenhar não se desvinculava do território a que pertenciam os alunos, no entanto, não se reduzia à esfera de suas percepções e senso comum.  Ao  contrário,   dialogava  com  elas  no  sentido  de  ampliá-las,  causar  o estranhamento  e  a  necessidade  de  buscar  compreender  os  fenômenos  através  da pesquisa de diferentes interpretações do mesmo e do confronto entre teorias. Buscamos não ignorar o “conhecimento historicamente acumulado”, mas justamente dialogar com ele  não  como  coisa  natural  e  una,  mas  como  acervo  humano  sujeito  à  crítica  e renovação.

A  metodologia   de   ensino-aprendizagem   nos   empreendimentos   solidários, segundo  aponta  o documento que aqui tomamos por base, tem sofrido também esse conflito entre a aproximação da realidade dos jovens e adultos e a necessidade de ampliação de seu repertório com o conhecimento historicamente acumulado.

Cremos, no entanto, que seja a superação dos preconceitos sobre a identidade dos educandos ou sobre o quanto conseguiriam ou não aprender que esteja em jogo. Um exemplo disso pode ser a  concepção de que o conhecimento se constrói apenas em camadas, de que se alguém não sabe  escrever corretamente, é incapaz de debater um assunto; se não domina o código escrito, ainda não pode usar o computador; se não sabe fazer divisão com mais de um número da chave, não pode fazer um orçamento.
Nossa experiência enquanto docente e no CIEJA na Rua porém, nos revelou que o aprendizado  pode se dar por diferentes vias e a partir de diferentes conhecimentos sobre um assunto ou técnica. De fato, é preciso conhecer melhor os modos como nossos alunos conhecem as coisas e as aprendem. É na educação de jovens, adultos e idosos que se faz mais urgente ler o mundo antes de ler as palavras, de dialogar não apenas com o conhecimento prévio dos estudantes, mas também com seus modos de conhecer e aprender.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em 2012, o Projeto CIEJA na Rua tem continuidade às sextas-feiras no período da manhã,  horário em que a frequência tem sido maior nos projetos facultativos. A metodologia  adotada  segue  sendo  utilizada,  porém  os  temas  abordados  variam  de acordo com o mapeamento e interesse da nova turma. Dessa vez, os dados coletados e sistematizados pelos estudantes estão sendo também comunicados em diferentes mídias, de maneira a difundir mais amplamente as pesquisas da turma. Atualmente utiliza-se o Blog CIEJA na Rede, a Rádio CIEJA e o CIEJAZINE como meios de divulgação dos estudos realizados.

O Projeto pode ter impactado também na organização das atividades do próprio CIEJA Butantã, que reanimou o levantamento de interesses dos estudantes através das assembleias e nas primeiras atividades de 2012, em que as turmas de diferentes períodos selecionaram temas para estudo e produção de texto. Dos estudantes que frequentaram o CIEJA na Rua em 2011, nota-se, ainda, maior participação e frequência nos projetos de sexta-feira, bem como maior autonomia para articular a  participação dos colegas nas assembleias e reclamar melhorias.

Entre os  estudos  em  andamento  pela  turma  destaca-se  a  iniciativa  de  uma educanda que mobilizada pelo objetivo atual de seu grupo – entender por que o CIEJA possui  organização  e  funcionamento  diferente  das  outras  escolas  de  EJA  –  foi entrevistar por  conta própria a Diretora Regional de Ensino. Não tendo conseguido a entrevista, mas já agendado um  horário para tal, a ação da estudante é reveladora do alcance de nossa prática, que pretende de fato que os educandos possam tomar para si a responsabilidade e autonomia de pesquisar, estudar e agir sobre a realidade.

Outro destaque do projeto em 2012 foi o ingresso de uma estudante em curso de informática gratuito próximo à sua residência para, segunda ela, poder aprofundar o que aprende e trazer mais novidades para a turma responsável pelo blog. Em seu primeiro ano de participação no Projeto, além  de fazer sua matrícula no curso, a aluna trouxe informações de como acessá-lo aos colegas e tem promovido o Blog da escola naquele espaço.  Poderíamos  citar,  ainda,  outros  ganhos  e  descobertas  do  segundo  ano  do Projeto, como a estudante que após visitar a Casa de Cultura do Butantã e Museu da Casa Brasileira passou a “levar os filhos para cultura”, como disse, ao explicar que não sabia que alguns lugares tinham “tantas coisas boas e de graça”.

Assim, o segundo ano do Projeto, ainda que incipiente, ao manter a metodologia poderá continuar o processo de reflexão, apropriação e ação sobre os espaços da cidade, fazendo dialogar os saberes de dentro e fora da escola.

Se a Economia Solidária não pretende se formular como projeto de poucos para a  grande  massa,  nem  corresponder  ao  ideal  de  formação  de  pequenos  grupos,  ela transcende, portanto, o caráter coercivo atribuído, muitas vezes, às práticas educativas escolares que impõem valores, padrões de linguagem ou comportamentos aos sujeitos, ao invés de permitir que eles possam confrontá-los  com  os seus próprios e construir algo  novo,  algo  que  se  configure  como  conhecimento   apropriado   ao  invés  de transferido.

Nesse sentido é que a Educação Popular transcende os desafios observados.  Nossa experimentação no CIEJA na Rua e nossa tentativa de construir uma prática inspirada na educação popular, com os trabalhadores estudantes e não para eles, pode contribuir, então, para vislumbrarmos  no  diálogo entre a realidade percebida e aquela desejada, possibilidades de intervenção que poderão transformar seus modos de ver e estar no mundo, sua relação com o outro, com o espaço urbano e com o trabalho. Deste modo é que pretendemos concretizar o ideal de que a Economia Solidária se constitua em movimento com os trabalhadores jovens e adultos, agregando, de fato, seus saberes e necessidades e desejos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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WEFFORT, F.C. Educação e Política (Reflexões sociológicas sobre uma pedagogia da Liberdade) In:  FREIRE, Paulo. Educação como prática da Liberdade. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1969.

Vídeos

Levante Sua Voz – Vídeo produzido por Pedro Ekman do Coletivo Intervozes Coletivo Brasil de Comunicação Social com o apoio da Fundação Friedrich Ebert Stiftung. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=gf3Votr52QQ
Ilha das Flores –  Documentário do diretor Jorge Furtado. produção da Casa de Cinema de
Porto Alegre. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=KAzhAXjUG28
Baraka – Documentário experimental dirigido por Ron Fricke.
Vida Maria é um curta-metragem brasileiro criado por Márcio Ramos

Música

Esquadros – Composição de Belchior, na interpretação de Adriana Calcanhoto.

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