Autora: Vanessa Elsas Porfirio de Faria
Orientadora: Vera Lucia Queiroga Barreto
Co-orientação: Andreia Queiroga Bareto
Aos estudantes e professores do CIEJA Butantã, que diariamente ensinam-me o valor da solidariedade.
Aos formadores do ITCP USP, Gabriela Rizzo Iervolino, Pedro Paulo Felippe, Elisangela Soares Teixeira, Danilo Queiroz e Maíra Etzel, por reanimarem o sonho pela construção de outro mundo possível.
AGRADECIMENTOS
À Universidade Federal do ABC e professores do Curso de Especialização em EJA e Economia Solidária, por reanimarem o diálogo entre EJA e Economia Solidária e abrir espaço aos aprendizados advindos das escolas públicas.
Aos formadores do ITCPUSP, pela generosidade e empenho em construir o conhecimento de mãos dadas com professores e alunos.
Aos Professores e Gestores do CIEJA Butantã e CIEJA Campo Limpo pelo inestimável compromisso com a qualidade da educação de jovens, adultos e idosos e pela contribuição nos estudos.
A Célia Aparecida F. Borges, Cristina da Silva Ferreira, José Rodrigues Ferreira Junior, que tornaram esse trabalho possível e se aventuraram comigo no desenvolvimento do Projeto CIEJA na Rua.
Mãos Dadas
Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela, não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins. O tempo é a minha matéria, do tempo presente, os homens presentes, a vida presente.
Carlos Drummond de Andrade
SUMÁRIO
- 1. INTRODUÇÃO
1.1 Objetivos
1.2 Justificativa
1.3 Etapas do Estudo e Métodos - 2. EJA: ENTRE O FUTURO APRISIONADOR E A CONSTRUÇÃO DA PRÁTICA LIBERTÁRIA
2.1 As intencionalidades que permeiam a oferta da EJA
2.2 O contexto do CIEJA Butantã: buscando a construção da escola de jovens e adultos
2.3 O perfil dos estudantes do CIEJA Butantã em 2011 - 3. EJA E ECONOMIA SOLIDÁRIA
- 4. EDUCAÇÃO POPULAR E EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: POR UMA PEDAGOGIA DA PARTICIPAÇÃO POPULAR
4.1 A nova classe média e o papel da educação
4.2 Paulo Freire e a Participação Popular - 5. PROJETO CIEJA NA RUA: PARA ALÉM DOS MUROS DA ESCOLA
5.1 Sensibilização e Mobilização
5.2 Reconhecimento do território
5.3 Intervenção Coletiva
5.4 O começo do fim ou o fim do começo? - 6. PERSPECTIVAS PARA O DIÁLOGO ENTRE EDUCAÇÃO POPULAR E ECONOMIA SOLIDÁRIA NA EJA
- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- ANEXOS
1. INTRODUÇÃO
Durante o curso de especialização EJA e Economia Solidária, oferecido pela Universidade Federal do ABC em convênio com o ITCP USP, diferentes profissionais da educação foram incentivados a refletir sobre as intencionalidades assumidas pelo trabalho educativo na sociedade capitalista e a vislumbrar outra organização social possível – aquela ancorada na Economia Solidária.
Esse trabalho de conclusão do curso visa apresentar as reflexões e práticas de educativas desenvolvidas ao bojo de uma intencionalidade diversa daquela tradicionalmente oferecida nos sistemas públicos de ensino, pautada na participação popular e na construção de outras relações sociais e econômicas.
Utilizamos os conhecimentos acumulados pela Educação Popular, tal como concebida em diferentes iniciativas educativas durante a década de 1960 e no pensamento do Professor Paulo Freire, como base do diálogo entre a Educação de Jovens e Adultos e Economia Solidária.
Nossa intenção era (re)conhecer relações possíveis de serem feitas entre a Educação Popular e a criação de uma cultura de participação democrática na escola pública, a partir da percepção, mobilização e vivência dos trabalhadores jovens e adultos e idosos.
Observamos, desde o início de nosso trabalho, que a educação popular é fundamental para o desenvolvimento da Economia Solidária, na construção, consolidação e disseminação de seus princípios e valores não só junto aos empreendimentos solidários, mas também às instituições oficiais de ensino.
Partimos do pressuposto de que as práticas educativas, fundamentadas no princípio democrático da Economia Solidária, não poderiam se realizar sem o reconhecimento dos sujeitos da EJA, da ampliação dos sentidos da aprendizagem para os educandos e nem se afastar da participação dos mesmos de sua formulação.
Desse modo, amparamos nossa análise em duas frentes: reconhecer os sentidos as demandas de aprendizado dos alunos do Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos do Butantã (CIEJA BT) e promover a gestão democrática do ensino, investigando as possibilidades de obter maior participação dos alunos na construção do conhecimento dentro e fora da escola no Projeto CIEJA na Rua.
1.1 Objetivos
– Investigar diferentes intencionalidades da Educação Popular na lógica da sociedade capitalista e na lógica da Economia Solidária e coloca-las em diálogo com a Educação de Jovens e Adultos;
– Dialogar com os saberes e demandas de aprendizado dos jovens e adultos;
– Sistematizar prática de ensino, que privilegia a apreensão da leitura de jovens, adultos e idosos sobre o território escolar, sua crítica e ação sobre ele.
1.2 Justificativa
A educação popular passou por um período de efervescência no Brasil em um momento em que as tensões entre trabalho e capital já não podiam mais ser caladas diante da opressão do Estado representativo das elites.
Nesse cenário a Educação de Jovens e Adultos esteve frequentemente relacionada a concepções compensatórias e assistencialistas, já que essa população não faz parte, tradicionalmente, do projeto de futuro burguês. As iniciativas oficiais, dos Municípios, Estados e União surgem no bojo dessa concepção assistencial e “voluntariosa”, ganha força no período de industrialização para formar não trabalhadores emancipados, mas “operários” relegados à própria sorte. Mais tarde, a globalização exige novo empenho do Estado para formação dos jovens e adultos, que dessa vez muito mais que para provê-los de “oportunidades” de emprego, o faz para que essa população possa ter acesso econômico e cultural suficiente para o consumo das novas tecnologias.
Em outra frente, ganha força nos anos 50 e 60 a educação popular, concebida numa perspectiva de emancipação do trabalhador, que privilegia a formação humanista e cidadã e vai ao encontro dos jovens e adultos que necessitavam refletir e sistematizar os saberes advindos do seu trabalho e das formas de produção que testemunhavam. A educação popular pretende superar a desigualdade social, valorizar o saber do outro e construir coletivamente os conhecimentos, transformando as relações sociais. Nesse sentido, ela reflete sobre a relação do homem com o trabalho e sua condição social.
Segundo Gadotti (1999), desenvolver um projeto educativo popular é quase impossível sem relacioná-lo ao trabalho e aos mecanismos de produção. Para que a educação possa ser libertária (FREIRE, 1979) necessita mirar a transformação das relações sociais e a construção de outra organização econômica, que não se paute pela exploração do trabalhador. A economia solidária pode ser uma alternativa para construção da identidade dos jovens e adultos, que passam a vislumbrar outra possibilidade para o trabalho e vida social.
Trata-se de, o diálogo possível de ser feito entre os conhecimentos e práticas educativas desses lugares do saber, não para contrapô-los ou distanciar suas realidades, mas para apontar caminhos para o desenvolvimento da educação popular, transformadora das relações e viabilizadora de outra economia, outra concepção de mundo: mais democrática, mais justa, mais solidária.
1.3 Etapas do Estudo e Métodos
Nossa pesquisa se desenvolveu em três eixos principais:
1) Revisão de literatura sobre educação Popular e Economia Solidária e EJA e sistematização de dados sobre o perfil do CIEJA BT;
2) Desenvolvimento de Oficinas do CIEJA na Rua;
3) Análise dos dados e relato de experiência pedagógica.
As Oficinas do CIEJA na Rua foram planejadas, tendo-se como base o quadro de ideias elaborado no início do curso “EJA e Economia Solidária”. Elas foram desenvolvidas, com foco de nossa pesquisa, como projeto piloto que abrange conteúdos e aulas já desenvolvidas pelo CIEJA BT na área de Ciências Humanas e Linguagens e Códigos, e foram rearticuladas, concentradas e aprofundadas, tendo a Economia Solidária enquanto orientadora da ação pedagógica.
2. EJA: ENTRE O FUTURO APRISIONADOR E A CONSTRUÇÃO DA PRÁTICA LIBERTÁRIA
A Educação de Jovens e Adultos é consolidada entre os Direitos Humanos no artigo XXVI: “Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais”. Nesse sentido, a EJA deveria atender à demanda dos jovens, adultos e idosos, atentando-se às condições e necessidades dos educandos, assim como estabelece a Lei de Diretrizes e Bases 9.394/96 (LDB/96):
Art. 37. A educação de jovens e adultos será destinada àqueles que não tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino fundamental e médio na idade própria. § 1º Os sistemas de ensino assegurarão gratuitamente aos jovens e aos adultos, que não puderam efetuar os estudos na idade regular, oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as características do alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho, mediante cursos e exames.
Reconhecer as especificidades dessa modalidade de ensino implicaria em discutir quais seriam as “oportunidades educacionais apropriadas” para oferta da EJA e mesmo em relação às quais intencionalidades educativas elas seriam ou não “apropriadas”. Ao mesmo tempo, devemos nos questionar em que medida essa consideração das especificidades inerentes aos jovens e adultos, de fato, influencia as práticas educativas para essa parcela da população.
Verifica-se que a noção dessa “apropriação” pode atrelar-se à ideologia hegemônica na sociedade; a depender das ideias em que se amparam as propostas para EJA, nos deparamos com a realização do ensino enquanto instrumento de reprodução da ordenação social existente ou de intervenção e transformação da mesma.
Além de procurar fixar seu modo de sociabilidade através de instituições determinadas, os homens produzem ideias ou representações pelas quais procuram explicar e compreender sua própria vida individual, social, suas relações com a natureza e com o sobrenatural. Essas ideias ou representações, no entanto, tenderão a esconder dos homens o modo real como suas relações sociais foram produzidas e a origem das formas sociais de exploração econômica e de dominação política. Esse ocultamento da realidade social chama-se ideologia. Por seu intermédio, os homens legitimam as condições sociais de exploração e de dominação, fazendo com que pareçam verdadeiras e justas. Enfim, também é um aspecto fundamental da existência histórica dos homens a ação pela qual podem ou reproduzir as relações sociais existentes, ou transformá-las, seja de maneira radical (quando fazem uma revolução), seja de maneira parcial (quando fazem reformas). (CHAUÍ,1980, p.8-9) (Grifo nosso)
A ideologia neoliberal, que permeia a oferta de EJA nas escolas públicas do país, parece, então, esconder “a origem das formas sociais de exploração econômica e de dominação política” das classes populares. A escolarização fundamentada no centro dessa ideologia é capaz de, a um só tempo, diferenciar e isolar os homens e mulheres das classes populares, os responsabilizar pelas precariedades que vivenciam e os embalar numa promessa vazia de futuro com igualdade.
Nesse sentido, de acordo com a intencionalidade e o projeto de sociedade com que é engendrada a EJA, podemos encontrar práticas de ensino mergulhadas na vivência e expectativas dos jovens, adultos e idosos, ou totalmente alheias a elas, conferindo ao povo um papel pré-determinado na história e no desenvolvimento do país.
2.1 As intencionalidades que permeiam a oferta da EJA
A “apropriação” da EJA nas instituições escolares, tal como determina a LDB 9.394/96, pode estar referenciada num ideal de ensino compensatório e supletivo, que se desenvolve como “educação de massa”, em que sua oferta tem se amparado muito mais num projeto para sociedade do futuro que na realidade dos homens e das mulheres presentes nos bancos escolares.
Ao considerarmos a história da EJA e a influência das políticas internacionais de desenvolvimento para formação das políticas de educação nacional, verificamos a fixação da instituição escolar como viabilizadora de uma organização da sociedade em que as camadas populares cumprem um “papel histórico”, sem que seus interesses e condições sejam propriamente considerados, muito menos tomados como base para construção das propostas de ensino.
Da queda do Estado Novo à década de 1960, as iniciativas educativas voltadas aos jovens e adultos, inspiradas nos ideais do liberalismo europeu e nos interesses capitalistas para manutenção de certa hierarquia social, desenvolveram-se segundo a intencionalidade de grupos dominantes, empenhados em definir um tipo ideal de homem adequado ao “desenvolvimentismo econômico”.
… a ideologia do desenvolvimento não é doação feita às classes populares, para que cada um absorva na medida de sua capacidade; pelo contrário, é transmutação que se opera na intimidade do homem em situação, e de que resulta a clarificação conceitual da representação que faz do seu status social e da evolução histórica. É processo imanente, mas admite aceleração por influência exterior. Isto é que constitui a noção social de educação (…). Uma teoria da educação deverá surgir, cuja tarefa será a de definir o tipo de homem que se deseja formar para promover o desenvolvimento do país. Em função desse objetivo deverão ser revistos os atuais esquemas educacionais, a fim de que, sem abandonar o que seja aconselhável manter da tradição, se concentrem os esforços pedagógicos na criação de nova mentalidade. As gerações em crescimento deverão ser preparadas para a compreensão do seu papel histórico, na transição da fase porque está passando a sociedade brasileira, capacitando-se das suas responsabilidades no processo. (PINTO, 1959 apud BEISIEGEL, 1982, p. 55)
Essa modalidade de ensino vem sendo, então, sistematicamente submetida a regulamentações institucionais retrógradas, que recuperam esse sentido de educação para ratificar uma velha “nova mentalidade”: aquela em que a escolaridade significa degrau para a ascensão social, em que a história se constituiria como traço verticalizado em direção à evolução e em que as camadas populares já possuem “responsabilidades” delimitadas.
No sistema capitalista, a atuação das elites na condução do “povo” , sob sua pretensa homogeneização, se baseia nesse projeto de sociedade em que o homem seria ao mesmo tempo produto das disposições de sua época e objeto moldável ao “papel histórico” para ele idealizado. A influência nas consciências e a “modelagem” do tipo de homem adequado para promover o desenvolvimento do país são, contudo, papéis assumidos pela educação e diversas instituições sociais.
A educação, quando realizada segundo essa intencionalidade, cumpre a função de controle social em que, pensada pela elite para instrução do “povo”, pode ocultar certo ideal de organização social em que, muitas vezes, ela pretende manter sua posição privilegiada de “elite” e dar continuidade às relações de desigualdade existentes.
No entanto, se esse ideal de educação, forjado segundo o pensamento liberal, correspondia à ampliação e diversificação das oportunidades de emprego no passado, atualmente responde à emergência de novas formas de produção e seleção para as oportunidades de trabalho cada vez mais escassas. As políticas neoliberais que concebem a educação enquanto pressuposto do desenvolvimento econômico, no entanto, continuam reduzindo o processo educativo à mera certificação para ocupar empregos formais, como se ela fosse um “passe livre” para a prosperidade individual e do país.
Convenientemente, as políticas educacionais que emergem das orientações neoliberais parecem encobrir que o desemprego estrutural é inerente ao sistema capitalista. Assim, a educação enquanto pressuposta da qualificação profissional atende aos interesses pela formação de mão de obra especializada e, muitas vezes, precária para ocupar os postos de base nas empresas e indústrias, que desaparecem gradativamente com o surgimento de novas tecnologias. Cada vez mais, a educação é ofertada enquanto promessa de um futuro sem desigualdades, promessa que dificilmente poderá ser cumprida em meio a um sistema que se sustenta por mecanismos de exclusão social.
De outra sorte, na década de 1960, observamos nova intencionalidade para educação do povo e o engendramento de novo sentido à EJA. Num contexto de movimentações na realidade socioeconômica do país, em que a economia de base rural progressivamente cedia espaço à economia urbana e industrial, a educação no pensamento e prática do Professor Paulo Freire ganhava novo contorno.
A partir de pressupostos comuns para emancipação dos trabalhadores, a Educação Popular despontou em iniciativas chamadas de “progressistas”, concebidas através de um conceito que ultrapassava a mera crítica à instituição escolar enquanto instrumento de dominação ideológica ou econômica (quando forma mão de obra) do Estado, para vislumbrar em seu interior um potencial de transformação social.
Com o golpe militar de 1964 essas iniciativas foram extintas, prevalecendo a fixação da educação escolar enquanto instrumento da ordenação da sociedade capitalista. Elas legaram, porém, aprendizados e práticas que reverberaram em diversas propostas para educação de jovens e adultos no Brasil desde a década de 1980, que procuravam atribuir à educação o sentido pautado nas condições e interesses dessa população, cedendo espaço para seus próprios ideais e projetos para o futuro, tal como determina a LDB 9.394/96.
Não será possível, contudo, considerar a educação como prática libertária e transformadora do quadro social, enquanto a atrelarmos às lógicas de mercado e ao enriquecimento econômico, que significa o enriquecimento de uma minoria e a manutenção da chamada “coesão social”. [1]
Do mesmo modo a educação que se pretende emancipadora depende do reconhecimento da diversidade dos sujeitos de direito da EJA, da pluralidade de seus interesses e condições, buscando sua participação e o diálogo entre eles e as propostas curriculares, de organização do espaço e tempo escolares.
2.2 O contexto do CIEJA Butantã: buscando a construção da escola de jovens e adultos
O Projeto CIEJA é uma das propostas de ensino que, inspirada no pensamento e prática educativa de Paulo Freire, pretendem transcender tempos, espaços e currículos marcados pelos interesses capitalistas na “educação bancária” para fomentar a educação popular e participação dos homens e mulheres na construção da sociedade. É nesse sentido que os ideais da Economia Solidária vêm ao encontro dos princípios do Projeto para formação dos jovens, adultos e idosos.
Os CIEJAs tiveram origem no governo de Marta Suplicy (2001-2005) quando foram avaliados e reformulados os Centros Municipais de Ensino Supletivo (CEMES). Os CEMES, por sua vez, foram idealizados durante o governo de Luiza Erundina (1989-1992), período em que Paulo Freire era Secretário de Ensino do município de São Paulo, mas só passaram a funcionar na gestão de Paulo Maluf (1993-1996).
Funcionando desde 2003, os CIEJAs ofertam a EJA de forma diferenciada dentro da rede municipal, possui Ensino Fundamental nos ciclos I e II, correspondente ao ensino regular do primeiro ao nono ano. O CIEJA visa oferecer melhores condições de acesso e permanência dos jovens e adultos na escola. O curso oferecido é presencial e organizado em quatro módulos com duração de um ano cada; o currículo integra três áreas do conhecimento: Linguagens e Códigos, Ciências Humanas e Ciências da Natureza e Matemática. Além disso, o CIEJA oferece Itinerários Formativos em Informática que assume o caráter de formação profissional, aliando a escolarização ao Trabalho.
As aulas, presenciais e obrigatórias, possuem 2h15 de duração, são distribuídas nos períodos matutino, vespertino e noturno, o que facilita a conciliação dos estudantes com as condições particulares de trabalho e responsabilidades familiares. Os estudantes podem frequentar também as Orientações de Estudo para tirar dúvidas, aprofundar-se em algum tema, desenvolver ou participar de algum projeto diferenciado, ampliando ou compondo a carga horária.
Os horários de estudo flexíveis podem facilitar o acesso e permanência dos jovens e adultos na escola. No CIEJA Butantã a equipe técnica é composta pela Coordenadora Geral e Assistente de Coordenação, Orientadoras Pedagógicas Educacionais, Professores [2] e Funcionários da rede municipal, que são designados para os cargos que ocupam nos Centros. Com a designação, foi possível fixar por mais tempo seu quadro de profissionais dessa unidade, bem como integrá-lo com educadores cuja prática se aproxima dos princípios do projeto. Essa fixação do quadro de profissionais da equipe também propicia a construção coletiva das ações pedagógicas, sua avaliação, transformação ou manutenção ao longo dos anos.
Esses estudantes, quando questionados sobre os motivos que os levaram a procurar o CIEJA não raro mencionam que enxergam na escola uma condição para “melhorar de vida” ou “ter uma oportunidade melhor no emprego”. Há também, sobretudo entre as mulheres, aqueles alunos que mencionam o retorno à escola como satisfação de um desejo pessoal.
Atualmente, o CIEJA BT possui 6 turmas em cada um dos 6 horários de atendimento nos períodos da manhã, tarde e noite. De cada 6 turmas de um horário, 2 são de ciclo I: alfabetização e pós-alfabetização. As turmas possuem em média 15 alunos e verificamos que os módulos de alfabetização e pós-alfabetização possuem predominância de adultos e idosos.
Durante o ano, constatamos que os jovens, adultos e idosos passam por diversos desafios para continuarem estudando, muitas vezes, porque suas condições de trabalho e moradia são inconstantes e sofrem mudanças bruscas que impactam na organização de seus tempos na escola.
Nesse sentido, a organização do CIEJA com diferentes alternativas para assistir às aulas e participar das atividades pode facilitar muito a permanência dos estudantes na escola a despeito das dificuldades de ordens diversas que eles enfrentam.
3. EJA e Economia Solidária
Olho porque o mundo não tem igualdade. Por que a gente não tem coragem de falar como eles? Por que a gente não tinha autoridade? Por que o povo mais humilde não tinha a oportunidade de falar como alta sociedade?
A EJA tem sido concebida nas instituições escolares muito mais como conformadora das relações sociais, como responsável pela “civilidade” dos sujeitos ou por sua “domesticação”, que propriamente como centro potencial para reorganização da convivência entre grupos, para a reflexão sobre seus valores, para a crítica e inovação de técnicas, para a reconfiguração social.
A escola constituiu-se ao longo de séculos como um centro opressor dos costumes e valores destoantes do “desejável” ou “aceitável” para uma pequena parcela da sociedade, ao invés de ser palco em que as tensões entre a elite e a massa pudessem encontrar meios de se transformar em relações menos desiguais.
Desse modo, o que se observa da escola atual em modelos variados no mundo e mais especificamente no Brasil – tão ignorada e sucateada- é seu papel de submeter a formação humana aos interesses econômicos dos detentores dos meios de produção, louvar o individualismo para calar o grito das massas.
Quando se assume uma postura crítica frente às relações de troca construídas historicamente, percebe-se que na era do capitalismo, o valor do ser humano está reduzido ao quanto valemos, em dinheiro, diante de um sistema que nos aliena, nos afasta do outro e de nós mesmos, a ponto de não nos incomodarmos em perder o sono, o sonho, a dignidade. É a falta do dinheiro e “status” conferidos por algumas profissões que retira a autoridade dos homens e mulheres, os impede de falar, de denunciar a desigualdade vivida e buscar superá-la.
Homens e mulheres vendem, dia após dia, muito mais que seu tempo ou força de trabalho. Na sociedade capitalista, eles têm vendido a convivência com quem lhes é caro, a autonomia e a liberdade. São máximas de nosso tempo que a culpa por sua “falta de autoridade” é toda sua, que não conseguiram embarcar no trem do desenvolvimentismo econômico por pura incompetência, ou seja, pela falta de estudo. Estudo a que não tiveram acesso ou não puderam frequentar quando estavam trabalhando, que nada de seu lhes comunicava ou anunciava. Não estudaram o suficiente, não se esforçaram o suficiente, não inovaram a velha roda o suficiente, nem assumiram a “responsabilidade” ou “papel histórico” que lhes atribuíram.
A ideologia da competição chama atenção apenas para os vencedores, a sina dos perdedores fica na penumbra. O que acontece com os empresários e empregados das empresas que quebram? E com os pretendentes que não conseguem emprego? Ou com os vestibulandos que não entram na universidade? Em tese, devem continuar tentando competir, para ver se saem melhor da próxima vez. Mas, na economia capitalista os ganhadores acumulam vantagens, os perdedores acumulam desvantagens nas competições futuras. (SINGER, 2002, p. 8)
Nesse sentido, cabe à educação de jovens e adultos (EJA), antes que reforçar essa “ideologia da competição” forjada, configurar um lugar em que essa ilusão seja desfeita. A EJA deve ser, portanto, o lugar do encontro e não da consolidação de posições, o lugar da palavra viva, da autonomia, da discussão, do estranhamento, do resgate daquelas vozes tantas vezes acostumadas a costumes que nunca lhes pertenceram. A EJA, enquanto educação popular, é um campo em que se pode, coletivamente, conceber o valor do ser humano enquanto sujeito histórico.
A EJA tomada dessa intencionalidade transformadora possui saberes e experiências acumuladas na Educação Popular, tal como concebida por Paulo Freire nos anos de 1960, bem como na Economia Solidária, tal como concebida por Paul Singer, que vislumbra uma organização econômica popular, voltada para os interesses e condições do povo e não à manutenção de uma elite no poder.
A Economia Solidária é também educativa para quem há muito naturalizou a violência da exploração cotidiana. Ao reavaliar e criticar o modo como se concebe o “valor” de troca contido nas relações de trabalho capitalista, o valor assumido pelo ser humano frente ao lucro, ao projetar outra organização econômica possível, a economia solidária pode resgatar aquele estranhamento essencial para mudança.
A economia Solidária pretende, justamente, desmontar o ocultamento “daquelas relações de exploração e dominação dos homens” na ideologia capitalista, revelar atrás da aparencia “justa e verdadeira” de sua lógica, a desigual e falsa promessa de um futuro a que nem todos pertencerão, mas sobreviverão apenas à margem.
Reconhecendo, então, como cerne da desigualdade, a posse dos meios de produção por poucos, a competividade das relações econômicas, a concentração dos lucros nas mãos de uma minoria, a submissão das instituições sociais aos interesses do capitalista, a Economia Solidária propõe o desvelamento e transfomarção das bases da exploração do homem sobre o homem, devolvendo a ele a possibilidade de retomar a palavra, a autonomia, a posse dos meios de sua própria sobrevivência, de construir outra organização social.
O que importa entender é que a desigualdade não é natural e a competição generalizada tampouco o é. Elas resultam da forma como se organizam as atividades econômicas e que se denomina modo de produção. O capitalismo é um modo de produção cujos princípios são o direito de propriedade individual aplicado ao capital eo direito à liberdde individual. A aplicação destes princípios divide a sociedade em duas classes básicas: a classe proprietária ou possuidora do capital e a classe que (por não dispor de capital) ganha a vida mediante a venda de sua força de trabalho à outra classe. O resultado natural é a competição e a desigualdade. A economia solidária é outro modo de produção, cujos princípios básicos são a propriedade coletiva ou associada do capital e o direito à liberdade individual. A aplicação desses princípios une todos os que produzem numa única classe de trabalhadores que sãopossuidores de capital por igual em cada cooperativa ou sociedade econômica. O resultado natural é a solidariedade e a igualdade, cuja reproduação, no entanto, exige mecanismos estatais de redistribuição solidária da renda. (SINGER, 2002, p. 10)
Fundada no princípio da solidariedade, da cooperação entre os homens e entre as classes, o projeto para sociedade da Economia Solidária não apenas é pautada na idealização do futuro, mas na ação dos homens e mulheres do tempo presente. Mais do que reconhecer a origem da desigualdade e compreender as marcas que carregam dela, as classes populares, assim como as elites, são postas na posição daquelas pessoas cuja liberdade não se submete à propriedade ou a um futuro pré-concebido, mas constroem, a partir da intervenção no mundo presente, outras relações sociais.
A economia solidária ratifica, então, a solidariedade não como o assistencialismo, mas como a cooperação, a primeira palavra se origina de uma postura passiva “assistir”, a segunda de uma postura ativa cooperar. Além disso a operação não será de poucos, de uma elite para o povo, mas sim uma atitude que implica o com, o fazer junto. É nesse sentido que a economia solidária ao mesmo tempo em que concebe o indivíduo em seu lugar de autor, reconhece a autoridade não apenas da “alta sociedade”, mas também dos “humildes”, desfazendo a desigualdade de suas posições.
Assim, abre-se espaço para que a realidade seja constituída pela junção e não justaposição de intencionalidades na sociedade democrática, em que assim como Paul Singer (2002) escreve “Ninguém manda em ninguém”, do mesmo modo como Paulo Freire (1987) também anunciava que “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo. Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho; os homens se libertam em comunhão”.
4. EDUCAÇÃO POPULAR E EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: POR UMA PEDAGOGIA DA PARTICIPAÇÃO POPULAR
4.1 O papel da educação para nova classe média
Num cenário de ampliação do valor do indivíduo frente ao coletivo, de validação da meritocracia enquanto pressuposto de justiça e ascensão social, toma, então, cada vez mais importância a intervenção na formação da consciência individual, ou seja, a sua educação.
Wright Mills (1976) descreve as movimentações sociais que, no bojo do capitalismo moderno, permeiam mais que a realidade econômica das pessoas, pois passam a se infiltrar também em sua esfera psicológica e relações interpessoais. Embora focando a realidade estadunidense, sua obra, “A nova classe média” (1976), aborda o papel das instituições sociais na formação do homem e pode iluminar a compreensão dessas modificações na sociedade brasileira e seu reflexo no cenário da educação.
Mills (1976) descreve o surgimento de uma nova classe média – os “colarinhos brancos” – como denominou. Imbuídos da ilusão de se tornarem “colarinhos brancos”, os homens relegariam o futuro à sorte do mercado. Embalados no mesmo sonho americano “à brasileira”, eles procuravam participar das movimentações de sua época.
Coletivamente, [os colarinhos brancos] são mais lastimáveis do que trágicos, lutando contra uma inflação anônima, sustentando até mesmo na miséria a esperança de uma rápida ascensão à americana. Eles são impelidos por forças que não podem controlar, arrastados por movimentos que não compreendem; metem-se em situações nas quais a sua posição é a mais desamparada. O homem de colarinho branco é o herói vítima, a criatura modesta que sofre a ação, mas não age, que trabalha desapercebida num escritório ou numa loja, que jamais levanta a voz, jamais retruca, jamais toma uma posição (…) Esses tipos americanos não foram construídos pela reunião de dados da experiência vivida. Como em outros países, foram elaborados a partir da tradição, dos manuais escolares e das divagações de espíritos simplórios. Foram reforçados e mesmo criados, especialmente em nossa época, pelo mecanismo das diversões populares e das comunicações de massa. (Mills, 1976, p.14-15)
Mills ratifica o papel das “diversões populares”, mídia e educação na formação dos colarinhos brancos por meio do que parece delinear-se como uma cultura de massa. Refere-se aos homens, crente na submissão dos mesmos ao seu tempo, ratifica seu papel restrito a objeto “impelido por forças que não consegue controlar”, desacredita em sua atuação individual e, sobretudo coletiva, aponta, assim, que não encontra neles mesmos um modo de libertá-los, mas antes de se submeterem docilmente a “movimentos que não compreendem”.
4.2 Paulo Freire e a Participação Popular
De outra sorte que nos apontamentos de Mills (1976), a conscientização das mulheres e dos homens através do ato pedagógico ocupa nos trabalhos do Professor Paulo Freire um papel com potência libertadora. Empenhado em conceber a educação que não fosse mera estratégia de reprodução das relações sociais, ou apenas conduzisse os indivíduos como objetos, Freire apostava nos educandos não apenas como receptores ou “instrumentos” de um projeto de futuro, nem somente como reflexos dele, mas sim como elementos potencialmente interventores no mesmo porque eram seres reflexivos.
Há uma pluralidade nas relações do homem com seu mundo na medida em que responde aos desafios desse mesmo mundo em sua ampla variedade. Em que não se esgota num tipo padronizado de resposta. A sua pluralidade não é só em relação aos diferentes estímulos que lhe emite o contexto, mas em relação ao mesmo estímulo. No jogo constante de suas respostas, altera-se no próprio ato de responder. Organiza-se. Escolhe a melhor resposta. Testa-se. Age. Faz tudo isso com a consciência de quem usa uma ferramenta. (…) A captação que faz dos dados objetivos, de sua realidade, como dos laços que prendem um fato ou dado a outro, é ontologicamente crítica, por isso reflexiva, e não puramente reflexa como bem cabe à esfera dos contactos. (FREIRE, 1963, p.5)
Essa ação dos homens, como revelam os primeiros trabalhos de Freire, partia do pressuposto de que eles não eram apenas “seres de contato” como explicita a citação acima, mas de “relações”, não eram apenas objetos do fazer educativo ou arrastados pelas disposições da realidade de seu tempo, mas poderiam ser eles próprios os sujeitos das ações que também os constituíam. Freire contrapõe a “esfera de contatos”, que implica na acomodação dos homens à cultura e história, com a “esfera de relações”, em que os homens interagem com seu tempo e cultura, recriando-os.
A educação dos jovens e adultos, então, enquanto instrumento de conscientização da mulher e do homem, assumiria certa função de fomentar essa sua condição de “agente” na sociedade, ao invés de submetê-lo enquanto indivíduo disperso na massa. Relacionando-se com a realidade, os atores poderiam se transformar e transformá-la.
Os caminhos que as práticas educativas percorriam apontavam não para o futuro enquanto dado pré-concebido, mas para uma realidade em suspenso, a ser construída. A proposta educativa de Freire guiava-se pela formação de um tipo humano cuja personalidade fosse democrática, não do homem ideal para o “desenvolvimento econômico do país”.
A formação da personalidade democrática dos seres humanos prescindiria, como explicitamos, de sua participação na sociedade não apenas enquanto objetos, mas enquanto aqueles que agem, criam e recriam. Essa reflexão de Freire sobre o que seria a participação das camadas populares na configuração da nova sociedade, ao contrário do que apresenta Mills (1976), apostava que os homens e mulheres pudessem escapar à condição massificadora, receber criticamente os dados objetivos da realidade e reformulá-los ao se relacionarem com ele, ao invés de se acomodarem nele.
Desse modo, o notável educador desenvolveu reflexões centrais para a participação ativa dos homens em seu tempo quando se referia à cultura e ao diálogo enquanto pressupostos da formação da personalidade democrática.
Observe-se ainda, a partir destas relações do homem com a realidade e nela, criando, recriando, decidindo, que ele vai dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade externa. Vai acrescentando a ela algo de que é mesmo o fazedor. Vai temporalizando os espaços geográficos. Faz cultura. E é ainda o jogo dialético de suas relações – com que marca o mundo refazendo-o e com o que é marcado – que não permite a “estaticidade” das sociedades nem das culturas. (…) Encontrava-se então o povo na fase anterior de fechamento de nossa sociedade, imerso no processo. Com a rachadura e a entrada da sociedade no Trânsito, emerge. Se na imersão era puramente espectador do processo, na emersão, descruza os braços e renuncia à espectação e exige a ingerência. Já não se satisfaz em assistir. Quer participar. Quer decidir. E o faz. Deixa de ser objeto para ser sujeito. (…) Instala-se então, em pleno Trânsito o fenômeno que Mannheim chama de “Democratização fundamental” que implica em uma crescente e irreversível ativação do povo no seu próprio processo histórico. É esta democratização fundamental que se abre em leque, apresentando dimensões interdependentes – a econômica, a social, a política e cultural – que caracteriza a presença participante do povo brasileiro, que no estágio anterior não existia. Sem passado de experiências decisórias, dialogais, emerge o povo em rebelião. A aceitação do povo em posição participante é uma atitude de quem é do Trânsito, oposta à de quem apenas esteja no Trânsito, considerando indébita esta participação. O primeiro será progressista – o segundo reacionário. (FREIRE, 1963, p. 5-8) (grifo nosso)
O educador apostava, então, que essa integração dos homens ao Trânsito, como designava as mudanças sociais de sua época, poderia se realizar por meio do trabalho educativo de conscientização popular.
Se para Vieira Pinto (1951) essa consciência construía-se em grande parte já pela inserção do indivíduo na sociedade moderna, pela “força imanente” ratificada em seu contato com as transformações da época, Paulo Freire parecia reconhecer que apenas ela não seria suficiente, pois poderia carregá-lo no Trânsito ao invés de permitir que ele fosse no Trânsito.
Se para alguns de seus contemporâneos a educação popular seria uma influência exterior para aceleração da conscientização do povo, para Freire, a conscientização implicava as trocas, o diálogo, a interação do homem com sua circunstância, seu posicionamento enquanto sujeito. Apostava que o homem “relacionando-se” com seu tempo, como produtor de cultura, não se conformaria nele, não estaria nele, mas seria nele participando de seu engendramento. É nesse sentido que a educação popular, mais do que delegar um papel histórico aos indivíduos das camadas populares, abria-se à reformulação desse papel pelos sujeitos.
Marcadamente, o notável educador empreendera sua pesquisa e prática de forma comprometida com o diálogo, como método de alfabetização e “conscientização” popular, de modo a refletir sobre a riqueza da palavra, sua centralidade na estruturação do pensamento e sua potencialidade formadora de ideias, e porque de (re)formadora de ideias, também (re)construtora de realidades.
Daí que a centralidade da contemplação da palavra prescindisse da leitura de mundo e que a leitura de mundo pudesse ser enriquecida pela leitura da palavra. Assim também que o indivíduo deixaria de receber a cultura como aquilo que lhe é distante e alheio, para se conceber integrante dela, produtor dela. Dessa forma, na singularidade estaria pluralidade de relações e, portanto, de possibilidades de participar da história.
Freire opunha-se, então, à educação estática e verticalizada, à “educação bancária”, bem como seu método se opunha à mera condução de um povo estático. Desse modo, em seus trabalhos, encontramos o sentido que a educação popular assume não apenas para a mobilização das classes populares, como também para participação do povo na sociedade democrática.
Weffort, no prefácio da obra do educador “Educação como prática da liberdade” (1969), reconhece que as motivações de Freire assentavam-se mais no trabalho educativo que na ação política. Ao mesmo tempo, Weffort apontava que para além da própria formulação do educador sobre o povo, estava essa mesma potência de conscientização política em sua prática pedagógica baseada no diálogo, no aprendizado coletivo pela apreciação das palavras geradoras; palavras vivas na realidade popular e
recriadas nos Círculos de Cultura [3].
Seria, pois, essa pedagogia da participação na leitura do mundo e das palavras que possibilitava que dos homens e mulheres então presentes emergisse o reconhecimento de si próprios, de sua condição de oprimidos, de sua necessidade de luta pela liberdade. Assim, relacionando e recriando sentidos, reconhecendo a luta que as palavras encobriam, é que Freire e o povo conscientizavam-se de que aquela também poderia ser sua própria luta.
Paulo Freire diz com clareza: educação como prática da liberdade. Trata-se, como veremos, menos de um axioma pedagógico que de um desafio da história presente. Quando alguém diz que a educação é afirmação da liberdade e toma as palavras a sério — isto é, quando as toma por sua significação real — se obriga, neste mesmo momento, a reconhecer o fato da opressão, do mesmo modo que a luta pela libertação. (…)Teoria e denúncia se fecundam mutuamente do mesmo modo que nos círculos de cultura, o aprendizado ou a discussão das noções de “trabalho” e “cultura” jamais se separa de uma tomada de consciência, pois se realiza no próprio processo desta tomada de consciência. E esta conscientização muitas vezes significa o começo da busca de uma posição de luta. A compreensão desta pedagogia em sua dimensão prática, política ou social, requer, portanto, clareza quanto a este aspecto fundamental: a ideia da liberdade só adquire plena significação quando comunga com a luta concreta dos homens por libertar-se. Isto significa que os milhões de oprimidos do Brasil — semelhantes, em muitos aspectos, a todos os dominados do Terceiro Mundo — poderão encontrar nesta concepção educacional uma substancial ajuda ou talvez mesmo um ponto de partida. (WEFFORT, 1969, p. 6-8)
De fato, em produções posteriores, Freire (1987) apresenta a divisão entre oprimidos e opressores, como verificamos na obra “Pedagogia do Oprimido”(1987). Como bem aponta Weffort, sua prática também o conduz à recriações sobre a própria teoria. O lugar central concebido ao diálogo possibilitara que a leitura de mundo e os sentidos das palavras emergissem encharcados daquelas vivências próprias das classes populares marcadas pela desigualdade.
Dessa maneira, ao mesmo tempo em que os indivíduos reconheciam traços comuns em sua condição social e podiam passar a compor um coletivo, Paulo Freire reconhecia no reconhecimento dos outros as contradições entre as classes sociais, que não mais poderiam ser ocultadas. Em Pedagogia da Esperança (1992), o próprio educador reconhece que o diálogo com as mulheres e os homens do povo provocara-lhe modificações na teoria e prática, quando se refere à fala de um trabalhador que o impeliu, durante uma reunião, a revê-las:
Nas idas e vindas da fala, na sintaxe operária, na prosódia, nos movimentos do corpo, nas mãos do orador, nas metáforas tão comuns ao discurso popular, ele chamava a atenção do educador ali em frente, sentado, calado, afundando em sua cadeira, para a necessidade de que, ao fazer seu discurso ao povo, o educador esteja a par da compreensão de mundo que o povo esteja tendo. (…) O fato de jamais haver esquecido a trama em que se deu aquele discurso é significativo. O discurso daquela noite longínqua vem se pondo diante de mim como se fosse um texto escrito, um ensaio que eu devesse constantemente revisitar. Na verdade, ele foi o ponto culminante no aprendizado há muito iniciado – o de que o educador ou educadora progressista, ainda quando, às vezes, tenha que falar ao povo, deve ir transformando o ao em com o povo. (FREIRE, 1992, p. 9)
O método do Paulo Freire, então, o lançava cada vez mais à frente de sua própria teoria por meio de sua experimentação e prática. Aqueles primeiros conceitos sobre a cultura, em que os homens eram reconhecidos como criadores e recriadores do mundo, aquelas primeiras apostas no diálogo permitiriam a reconstrução constante do seu próprio pensamento.
A educação de jovens e adultos ganhava novos sentidos, seja porque se reconhecia a condição dos oprimidos, seja porque conferia a possibilidade de que eles não apenas consumissem a cultura de massa, mas se reconhecessem produtores da cultura popular, de que participassem ativamente na construção da sociedade democrática.
Assim, distingue-se o pensamento de Paulo Freire daqueles primeiros analisados sobre a educação baseada nos interesses capitalistas, ela não poderia ser mais a educação para o povo, mas sua realização implicaria uma educação com o povo. Mais ainda, o povo não era “massa” uniforme. O povo eram os oprimidos.
A educação passava, então, a se comprometer com a libertação dos oprimidos segundo o projeto de futuro sonhado com eles e não para eles, projeto que com a revelação das contradições poderia apontar não mais para a continuidade das relações sociais existentes, mas para sua transformação. Contudo, o sentido da educação popular para Paulo Freire era enriquecido pelo fazer com as classes populares, permeado por suas experiências e lutas e, por isso mesmo, tomado de esperança.
Fazendo-se e refazendo-se no processo de fazer a história, como sujeitos e objetos, mulheres e homens, virando seres da inserção no mundo e não da pura adaptação ao mundo, terminaram por ter no sonho também um motor da história. Não há mudança sem sonho como não há sonho sem esperança. Por isso, venho insistindo, desde a Pedagogia do Oprimido, que não há utopia verdadeira fora da tensão entre a denuncia de um presente tornando-se cada vez mais intolerável e o anúncio de um futuro a ser criado, construído, política, estética e eticamente, por nós, mulheres e homens. A utopia implica essa denúncia e esse anúncio, mas não deixa esgotar-se a tensão entre ambos quando da produção do futuro antes anunciado e agora um novo presente. A nova experiência de sonho se instaura, na medida mesma em que a história não se imobiliza, não morre. Pelo contrário, continua. (…) Na verdade toda vez que o futuro seja considerado um pré-dado, ora porque seja a pura repetição mecânica do presente, só adverbialmente mudado, ora porque seja o que teria de ser, não há lugar para utopia, portanto, para o sonho, para a opção, para decisão, para a espera na luta, somente como existe esperança. Não há lugar para educação. Só para o adestramento. (FREIRE, 1992, p.41)
No pensamento e prática de Paulo Freire se nega a “educação bancária”, não haveria traços verticais da história, mas círculos de cultura, em que não havia o aluno – aquele a quem falta a luz –, mas o participante ativo da construção do conhecimento, da cultura e da história. A educação popular ancorava-se na possibilidade de que homens e mulheres pudessem tomar a palavra, dotá-la de sentidos próprios, descobrir nela as lutas encobertas e tê-la como chave de sua luta.
O método Paulo Freire, ao conceber relevância à subjetividade atrelada ao diálogo, que troca, reelabora e acrescenta sentidos aos indivíduos, criara a possibilidade de que a educação, tomada da intencionalidade de quem a promovia, pudesse ser também mergulhada na intencionalidade e vivência daqueles para quem era dirigida e, assim, pudesse também se transformar.
No método de alfabetização empreendido por Freire, desde a escolha das palavras geradoras, até a leitura compartilhada das mesmas, os homens e mulheres poderiam se descobrir também donos das palavras, donos de suas ações. Produtos e produtores do mundo e do tempo em que viviam, engajar-se-iam no futuro que não lhe seria dado como fatal Destino, mas que empreenderiam com esperança.
A contribuição do pensamento do Professor Paulo Freire para as iniciativas educativas voltadas aos jovens, adultos e idosos de sua época é incontestável. A prática do diálogo, o reconhecimento dos sujeitos como produtores de cultura e sua conscientização foram pontos centrais de diferentes propostas educacionais nos anos de 1960.
Intelectuais de diferentes movimentos sociais, da esquerda católica aos militantes do Partido Comunista, influenciavam e eram influenciados por Freire na concepção e prática de variadas iniciativas educativas, como o Movimento e Educação de Base (MEB), os Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE) e o Movimento de Cultura Popular (MCP) de Recife. Essas experiências educativas fomentavam a participação popular na construção da sociedade democrática e ganhavam força com a ascensão de governos progressistas ao poder.
De fato, a Educação Popular também passou a ser pensada como lugar de aproximação entre as elites intelectuais e as massas, bem como lugar de mobilização política, como verificamos no Movimento Popular do Recife (MCP).
O movimento popular não gera um gera um movimento cultural qualquer. Gera, precisamente, um movimento de cultura popular. Os interesses culturais do movimento popular têm, portanto, um caráter específico: exprimem a necessidade de uma produção cultural, a um só tempo, voltada par as massas e destinada a elevar o nível de consciência social das forças que integram, ou podem vir a integrar o movimento popular. A demanda por uma consciência popular adequada ou real e possuída é característica do movimento popular porque este se assenta nas três seguintes proposições: a) Só o povo pode resolver os problemas populares; b) Tais problemas se apresentam como uma totalidade de efeitos que não podem ser corrigidos senão pela supressão de suas causas vigentes; c) O instrumento que efetua a transformação projetada é a luta política guiada por ideias que representam adequadamente a realidade objetiva. (GOES, 1985, p.24-25)
Marcadas as diversidades das intenções e projetos nessas propostas educacionais de cunho progressista verifica-se, no entanto, que elas passavam necessariamente pela crítica à realidade experimentada pela população ao invés de sua acomodação. Uma de suas grandes contribuições à EJA é, sem dúvida, o confronto com o chamado “conhecimento historicamente acumulado” e a aproximação entre as práticas educativas e cultura popular. Esse confronto fora pertinente e profícuo não para reduzir o ensino às experiências imediatas dos estudantes, mas para reconhecer e criticar lucidamente o crivo com que se acumula e transmite o conhecimento, privilegiando certos projetos e visões de mundo em detrimento de outros.
Nesse sentido, as propostas de Educação Popular, tal qual preconizada por Freire e essas iniciativas recuperavam o valor da educação para inclusão e participação das camadas populares nos rumos da história, para seu posicionamento crítico e criativo, para o fortalecimento do espírito democrático.
5. PRÁTICAS PEDAGÓGICAS
6. CONCLUSÃO: PERSPECTIVAS PARA O DIÁLOGO ENTRE EDUCAÇÃO POPULAR E ECONOMIA SOLIDÁRIA NA EJA
São muitas as congruências nas intencionalidades com que se desenvolvem as iniciativas educativas nos empreendimentos solidários e na Educação Popular, como a imprescindibilidade de mobilização e participação ativa dos educandos no processo de ensino aprendizagem, a aproximação de suas experiências no trabalho e vida social concebendo-os como produtores de cultura, o reconhecimento de sua diversidade, condições e interesses, o desenvolvimento da consciência crítica, do espírito democrático e transformador da realidade.
A partir da análise do documento final da I Oficina de Formação de Formadores em Economia Solidária, que reuniu em cinco eixos temáticos algumas proposições, dificuldades e encaminhamentos que apontam para entraves para concretização dessas intencionalidades nos projetos educativos, desenvolvemos o diálogo com nossa experiência no Projeto CIEJA na Rua.
Nesse sentido, é importante considerar alguns pontos levantados no documento e em nossa experiência nesse estudo para a configuração de um projeto de formação que propõe dar voz à experiência individual ou de um grupo, observar suas especificidades nos modos de conhecer ou operar no espaço social, ou seja, que se constitui como educação democrática.
Destacamos algumas delas abaixo:
Contribuições
- As iniciativas de formação analisadas indicam a necessidade de utilizar uma linguagem que seja clara e objetiva para todos, como no exemplo citado com a presença de glossarista, que esclarece sobre o significado das palavras dentro do grupo.
- Flexibilidade nos conteúdos da formação abrindo a contribuição coletiva do conhecimento, como técnicas de grupo e tendo como base a experiência completa dos envolvidos. Percurso formativo desencadeado a partir da realidade do empreendedor, tendo a prática como ponto de partida do processo, e o resgate das histórias de vida como impulsionadora da formação.
- Desenvolver potencialidades de cada participante independentemente da escolaridade.
Limites e Dificuldades
- Baixa escolaridade dos empreendedores e dificuldades dos formadores em utilizar outras técnicas (mais ilustrativas nos materiais didáticos).
- É preciso considerar o aspecto da subjetividade e o tempo de cada um dos trabalhadores.
- A dificuldade de superação da cultura da subordinação que limita os processos formativos autogestionários. A cultura dominante dificulta a autogestão já que as pessoas estão acostumadas com lógicas diferentes da Economia Solidária (patrão/propriedade privada).
Os apontamentos do quadro, compilados no documento analisado, trouxeram à tona, contribuições e dificuldades das práticas formativas em empreendimentos solidários que também estão nas unidades escolares e outros espaços de formação. Nota-se, justamente, a pretensão de que a formação seja, de fato, configurada pelos sujeitos envolvidos e não sobreposta a eles. Isso não significaria abandoná-los à própria visão de mundo ou limitá-los aos saberes que já possuem, significa que o aprendizado pode ser constituído pelo diálogo, pelo interesse em saber mais, pela vinculação do sujeito ao objeto de estudo, por sua mobilização.
A partir das propostas e dificuldades expostas no documento e acima transcritas tecemos algumas considerações.
“As iniciativas de formação analisadas indicam a necessidade de utilizar uma linguagem que seja clara e objetiva para todos”
Destaca-se neste ponto, que a língua é uma construção sociocultural, desse modo, compreender a linguagem, ou mais propriamente o vocabulário utilizado em contextos específicos do trabalho, é acessar um modo de ver o mundo e comunicá-lo. A utilização da linguagem clara e objetiva, como apontaram os movimentos de Educação Popular de 1960, exige a reflexão sobre os modos próprios de comunicar das classes populares, do reconhecimento de sua linguagem e de seu universo vocabular, não como ponto final das estratégias pedagógicas, mas como ponto de partida para reflexão crítica e apreensão de outras variedades linguísticas. É nesse sentido, que na experiência de Paulo Freire em Angicos, os educadores pesquisavam o vocabulário usado pelo povo, as palavras relacionadas ao seu universo de relações sociais e econômicas.
Assim, mais do que a presença do “glossarista” como tradutor dos termos estrangeiros ao mundo daqueles trabalhadores em formação, a leitura desses mesmos termos prescinde de uma compreensão sobre o mundo que simboliza. Lembramos, então, que a comparação entre língua culta e coloquial, o prestígio social de cada variedade, as mudanças da língua nos diferentes meios, situações e tempos são discussões também formadoras, que tratam da língua não apenas enquanto instrumento de comunicação que alguns dominam “bem” ou “mal”, mas como construção cultural.
Lembra-se, a esse respeito, a construção do questionário para mulheres no Projeto CIEJA na RUA. Ao responder questionários na internet, antes de sistematizar as perguntas do próprio do grupo, nos deparamos com termos distantes da realidade dos estudantes. Nesse momento, procurávamos ler as palavras através do contexto em que estavam inseridas, discutimos, por exemplo, quem eram seus autores, quais eram suas intenções, a quem se dirigiam as perguntas, que informação pretendiam colher, que ideia prévia os autores tinham a respeito do público que responderiam as perguntas etc.
Desse modo, fora possível perceber que aquela linguagem “formal”, aquela utilização de palavras próprias do contexto de formulação de políticas, atrelava-se a identidade de seus autores, bem como a do público que desejariam atingir. A questão do prestígio daquela modalidade da língua atrelava-se também à credibilidade almejada para a pesquisa, deixando claro que a aproximação de termos e palavras consideradas como mais ou menos cultas socialmente, também se relacionava com o valor atribuído aos grupos sociais que a utilizavam.
Além disso, durante a sistematização das perguntas formuladas pela turma, constantemente buscamos a clareza e objetividade para facilitar a leitura entre as pesquisadas, além de contrapor padrões da língua falada com padrões da língua escrita, pudemos pesquisar palavras e termos utilizados em contextos próximos daquelas mulheres que responderiam o questionário.
Dessa forma, mais do que a “descoberta” dos significados de termos estranhos ao cotidiano dos educandos, a discussão sobre os sentidos que as palavras encobrem para além da semântica possibilita não a substituição vocabular dos grupos, nem a sobreposição da língua culta à língua coloquial, mas justamente a manipulação daquela primeira em contextos específicos, de maneira consciente e crítica sobre a necessidade socialmente construída de utilização de uma e não outra variedade da língua.
Flexibilidade nos conteúdos da formação abrindo a contribuição coletiva do conhecimento, como técnicas de grupo e tendo como base a experiência completa dos envolvidos. Percurso formativo desencadeado a partir da realidade do empreendedor, tendo a prática como ponto de partida do processo, e o resgate das histórias de vida como impulsionadora da formação.
Desenvolver potencialidades de cada participante independentemente da escolaridade.
Essas duas contribuições apontadas no documento citado, referem-se justamente à necessidade de que o processo de ensino aprendizagem não focalize intenções unicamente pertencentes aos seus propositores, mas que agregue as necessidades de formação daqueles para quem se dirigem as práticas educativas. Dessa forma, traçar um percurso educativo com e não para os educandos possibilita não apenas seu envolvimento com os processos de aprendizagem, mas principalmente que os sentidos de aprendizagem possam ser construídos coletivamente. Isso implica, em conhecer os sujeitos em formação, seu olhar sobre o mundo, sua forma de estar nele.
Na sociedade capitalista, em que os sentidos do aprender reduzem-se, muitas vezes, a conseguir um emprego, refletir sobre os porquês da aprendizagem recupera o valor da educação enquanto lugar de construção da identidade, transmissão cultural e inovação do conhecimento humano, ao invés de mera reprodução de saberes próprios de um grupo, saberes intocáveis, distantes de crítica ou inexoráveis.
É nessa direção que buscamos, desde o início, desenvolver o projeto CIEJA na Rua a partir do estranhamento do olhar dos próprios estudantes sobre sua realidade, a partir da crítica aos contextos do território em que se inseriam, dos seus próprios interesses de compreender como e por que seu lugar e suas relações se configuraram assim, a partir de suas intenção de intervenção e mudança. Importava-nos que os estudantes percebessem que “o mundo não é, está sendo” (Freire, 1979), que compreendessem por que ele está sendo assim e vislumbrassem um modo de agir para que possa ser como desejam.
A dificuldade de superação da cultura da subordinação que limita os processos formativos autogestionários. A cultura dominante dificulta a autogestão já que as pessoas estão acostumadas com lógicas diferentes da Economia Solidária (patrão/propriedade privada).
Nesse ponto, nos parece mais pertinente a discussão desenvolvida anteriormente sobre as intencionalidades das propostas educativas. Falar em autogestão pressupõe a não imposição de modelos preconcebidos, nem de negação ou adaptação da cultura dos sujeitos participantes de uma prática educativa ou solidária. Ao contrário, pressupõe a crítica e adesão a um projeto comum, que parte sim de percepções e costumes individuais mediatizados no diálogo com um ideal coletivo.
No projeto CIEJA na Rua, a todo momento confrontamos diferentes modos de pensar e se comportar, diferentes objetivos e propostas para as atividades. Procuramos, porém, antes de rotulá-los como mais ou menos autônomos, adequados ou democráticos, submetê-los à análise crítica do grupo. Partimos do pressuposto que aprender, como citamos, é um verbo de ação dependente do desejo subjetivo. Mediar as propostas e maneiras de se comportar diante dos problemas levantados e dados colhidos não foi tarefa fácil durante o projeto, mas só foi possível porque os alunos se abriram para o diálogo, se dispuseram e desejaram fazer parte daquele grupo, puderam propor e modificar aquilo que nele lhes parecia conveniente mudar, se responsabilizaram coletivamente por fazer funcionar suas próprias propostas, puderam aprender com os erros e rever caminhos.
Assim, se é certo que a cultura hegemônica é entrave para o desenvolvimento de nova cultura, também é certo de que ela só pode ser superada na medida em que se reconheça o quanto cada um se guia por ela, se constitui enquanto sujeito a partir dela, para então analisar o quanto dela deve permanecer, o quanto dela deve se transformar, o quanto dela deve se abandonar. Desse modo, a autogestão pressupõe o reconhecimento da identidade individual e coletiva, o diálogo entre o privado e particular, a adesão a um modo próprio e genuíno de gerir, construída com e pelos sujeitos, não para eles se adaptarem.
Baixa escolaridade dos empreendedores e dificuldades dos formadores em utilizar outras técnicas
(mais ilustrativas nos materiais didáticos).
É preciso considerar o aspecto da subjetividade e o tempo de cada um dos trabalhadores
Destaca-se na elaboração desse documento a implicação de que o projeto educativo não seja construído como qualquer espécie de manual ou receita, nem que se vincule a concepções ou práticas verticalizadas do processo de ensino-aprendizagem. No entanto, ainda são postos enquanto desafio a baixa escolaridade e a dificuldade de utilizar técnicas ilustrativas nos materiais didáticos.
Nesse sentido, observamos que o Projeto CIEJA na Rua pôde escapar a estruturação de uma metodologia rígida que controla passo a passo, ou aula a aula, por um caderno didático, ou por um programa pré-estabelecido unicamente pelos educadores. Nem por isso, deixamos de desenvolver uma metodologia rigorosa, que se orientava por eixos pelos quais obrigatoriamente iriamos passar em cada semestre (mapeamento, sistematização de dados e intervenção), por objetivos que guiavam nosso fazer e pela tríade “sensibilizar, (re)conhecer e intervir/agir”, método que dava coerência às atividades.
A metodologia que buscamos desenhar não se desvinculava do território a que pertenciam os alunos, no entanto, não se reduzia à esfera de suas percepções e senso comum. Ao contrário, dialogava com elas no sentido de ampliá-las, causar o estranhamento e a necessidade de buscar compreender os fenômenos através da pesquisa de diferentes interpretações do mesmo e do confronto entre teorias. Buscamos não ignorar o “conhecimento historicamente acumulado”, mas justamente dialogar com ele não como coisa natural e una, mas como acervo humano sujeito à crítica e renovação.
A metodologia de ensino-aprendizagem nos empreendimentos solidários, segundo aponta o documento que aqui tomamos por base, tem sofrido também esse conflito entre a aproximação da realidade dos jovens e adultos e a necessidade de ampliação de seu repertório com o conhecimento historicamente acumulado.
Cremos, no entanto, que seja a superação dos preconceitos sobre a identidade dos educandos ou sobre o quanto conseguiriam ou não aprender que esteja em jogo. Um exemplo disso pode ser a concepção de que o conhecimento se constrói apenas em camadas, de que se alguém não sabe escrever corretamente, é incapaz de debater um assunto; se não domina o código escrito, ainda não pode usar o computador; se não sabe fazer divisão com mais de um número da chave, não pode fazer um orçamento.
Nossa experiência enquanto docente e no CIEJA na Rua porém, nos revelou que o aprendizado pode se dar por diferentes vias e a partir de diferentes conhecimentos sobre um assunto ou técnica. De fato, é preciso conhecer melhor os modos como nossos alunos conhecem as coisas e as aprendem. É na educação de jovens, adultos e idosos que se faz mais urgente ler o mundo antes de ler as palavras, de dialogar não apenas com o conhecimento prévio dos estudantes, mas também com seus modos de conhecer e aprender.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em 2012, o Projeto CIEJA na Rua tem continuidade às sextas-feiras no período da manhã, horário em que a frequência tem sido maior nos projetos facultativos. A metodologia adotada segue sendo utilizada, porém os temas abordados variam de acordo com o mapeamento e interesse da nova turma. Dessa vez, os dados coletados e sistematizados pelos estudantes estão sendo também comunicados em diferentes mídias, de maneira a difundir mais amplamente as pesquisas da turma. Atualmente utiliza-se o Blog CIEJA na Rede, a Rádio CIEJA e o CIEJAZINE como meios de divulgação dos estudos realizados.
O Projeto pode ter impactado também na organização das atividades do próprio CIEJA Butantã, que reanimou o levantamento de interesses dos estudantes através das assembleias e nas primeiras atividades de 2012, em que as turmas de diferentes períodos selecionaram temas para estudo e produção de texto. Dos estudantes que frequentaram o CIEJA na Rua em 2011, nota-se, ainda, maior participação e frequência nos projetos de sexta-feira, bem como maior autonomia para articular a participação dos colegas nas assembleias e reclamar melhorias.
Entre os estudos em andamento pela turma destaca-se a iniciativa de uma educanda que mobilizada pelo objetivo atual de seu grupo – entender por que o CIEJA possui organização e funcionamento diferente das outras escolas de EJA – foi entrevistar por conta própria a Diretora Regional de Ensino. Não tendo conseguido a entrevista, mas já agendado um horário para tal, a ação da estudante é reveladora do alcance de nossa prática, que pretende de fato que os educandos possam tomar para si a responsabilidade e autonomia de pesquisar, estudar e agir sobre a realidade.
Outro destaque do projeto em 2012 foi o ingresso de uma estudante em curso de informática gratuito próximo à sua residência para, segunda ela, poder aprofundar o que aprende e trazer mais novidades para a turma responsável pelo blog. Em seu primeiro ano de participação no Projeto, além de fazer sua matrícula no curso, a aluna trouxe informações de como acessá-lo aos colegas e tem promovido o Blog da escola naquele espaço. Poderíamos citar, ainda, outros ganhos e descobertas do segundo ano do Projeto, como a estudante que após visitar a Casa de Cultura do Butantã e Museu da Casa Brasileira passou a “levar os filhos para cultura”, como disse, ao explicar que não sabia que alguns lugares tinham “tantas coisas boas e de graça”.
Assim, o segundo ano do Projeto, ainda que incipiente, ao manter a metodologia poderá continuar o processo de reflexão, apropriação e ação sobre os espaços da cidade, fazendo dialogar os saberes de dentro e fora da escola.
Se a Economia Solidária não pretende se formular como projeto de poucos para a grande massa, nem corresponder ao ideal de formação de pequenos grupos, ela transcende, portanto, o caráter coercivo atribuído, muitas vezes, às práticas educativas escolares que impõem valores, padrões de linguagem ou comportamentos aos sujeitos, ao invés de permitir que eles possam confrontá-los com os seus próprios e construir algo novo, algo que se configure como conhecimento apropriado ao invés de transferido.
Nesse sentido é que a Educação Popular transcende os desafios observados. Nossa experimentação no CIEJA na Rua e nossa tentativa de construir uma prática inspirada na educação popular, com os trabalhadores estudantes e não para eles, pode contribuir, então, para vislumbrarmos no diálogo entre a realidade percebida e aquela desejada, possibilidades de intervenção que poderão transformar seus modos de ver e estar no mundo, sua relação com o outro, com o espaço urbano e com o trabalho. Deste modo é que pretendemos concretizar o ideal de que a Economia Solidária se constitua em movimento com os trabalhadores jovens e adultos, agregando, de fato, seus saberes e necessidades e desejos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHAUÍ, M. O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1980.
FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 17.ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra,1979.
. Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra,. 1987.
. Pedagogia da esperança. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1992.
. Conscientização e alfabetização: uma nova visão do processo. Estudos Universitários – Revista de Cultura da Universidade do Recife. Número 4, 1963: 5-22. GADOTTI, M. Economia solidária como práxis pedagógica. São Paulo: Editora e livraria instituto Paulo Freire, 2009.
MILLS, C. W. A nova classe média. 2. ed. RJ: Zahar, 1976.
MTE SENAES. I Oficina Nacional de Formação/Educação em Economia Solidária:
documento final. Brasília: MTE, Senaes, SPPE, DEQ, 2006.
ROSA, G. Grande Sertão Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. SANTOS, M. Espaço e sociedade. Petrópolis: Vozes, 1979.
. O espaço dividido. Os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979 (Coleção Ciências Sociais) SINGER, P. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2002.
GOES, M. Antigos (novos) papeis revisitados: o MCP Caderno ADUFRJ. Rio de
Janeiro, ano 1, n.1, out. 1985, p. 24-30
WEFFORT, F.C. Educação e Política (Reflexões sociológicas sobre uma pedagogia da Liberdade) In: FREIRE, Paulo. Educação como prática da Liberdade. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1969.
Vídeos
Levante Sua Voz – Vídeo produzido por Pedro Ekman do Coletivo Intervozes Coletivo Brasil de Comunicação Social com o apoio da Fundação Friedrich Ebert Stiftung. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=gf3Votr52QQ
Ilha das Flores – Documentário do diretor Jorge Furtado. produção da Casa de Cinema de
Porto Alegre. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=KAzhAXjUG28
Baraka – Documentário experimental dirigido por Ron Fricke.
Vida Maria é um curta-metragem brasileiro criado por Márcio Ramos
Música
Esquadros – Composição de Belchior, na interpretação de Adriana Calcanhoto.
Sites
- [1]Delors utiliza, em Educação um tesouro: a descobrir, o termo “coesão social” ao se referir aos valores e práticas comuns a serem adquiridas no processo educativo, como forma de evitar a ruptura dos laços sociais.↩
- [2]Os professores são selecionados para trabalharem no CIEJA através de processo seletivo interno à rede municipal.↩
- [3] Círculos de Cultura é o nome concebido aos encontros educativos no MCP e na Campanha de Pé no Chão também se aprende a ler.↩