Projeto CIEJA na Rua: para além dos muros da escola

Ficha Síntese da Prática Pedagógica

Objetivos da Prática Pedagógica:

  • Ressignificar o espaço urbano e as relações sociais nele imbricadas;
  • Mapear, promover a postura crítica e tomar posse do território escolar e do entorno; Possibilitar a criação artística como forma de atuação social e construção da identidade; Promover a intervenção social dos estudantes nos territórios estudados;
  • Promover o letramento a partir da leitura, sistematização de dados e produção de textos diversos; Promover a participação dos alunos no desenho dos projetos de aprendizagem.

Palavras-chave: prática de ensino, EJA, território escolar, intervenção social, educação na cidade

Característica do grupo a quem foi aplicada a prática:
Jovens, adultos e idosos,  estudantes do ciclo I e II do ensino Fundamental. Por tratar-se de projeto aberto e de participação optativa, as turmas foram variadas, com frequência média de 12 alunos, constatando-se constituição de um grupo de mulheres entre 25 a 60 anos presentes com frequência mais contínua.

Dinâmica de trabalho adotada na prática pedagógica:
O projeto foi orientado segundo três eixos: sensibilização, reconhecimento do território e proposta de intervenção.
As  atividades  no  primeiro  e  segundo  semestre  seguiram  a  seguinte  metodologia:  Mapeamento  do território (pesquisa de campo/coleta de dados), sistematização e análise dos dados coletados (leitura, produção de textos e projeto de intervenção), intervenção coletiva.

Recursos necessários para aplicação:
Durante as atividades foram utilizados máquinas fotográficas, gravadores, aparelhos de som, computador
com internet. Para reaplicação das atividades, no entanto, cabe suprir as necessidades específicas para coleta de dados, pesquisa sobre o território estudado e intervenção proposta pela turma, sendo possível a substituição  dos  recursos  utilizados  ou  sua  ampliação  de  acordo  com  as  demandas  do  grupo  a  se constituir.

Breve currículo do autor da prática pedagógica
Célia Aparecida Borges – Professora de Arte do Ensino Fundamental II no CIEJA Butantã (Prefeitura de São Paulo), atua há 24 anos como educadora para adolescentes, jovens, adultos e idosos na rede pública de ensino. Especialista em Curadoria e Educação em Museus de Arte pela Universidade de São Paulo.

Cristina da Silva Ferreira – Professora de Ensino Fundamental I no CIEJA Butantã (Prefeitura de São Paulo), atua há 20  anos como educadora  para  adolescentes,  jovens,  adultos  e  idosos  na  rede  pública  de  ensino.  Graduada  em
Publicidade e Letras.

José Rodrigues Ferreira Junior – Professor de Geografia do Ensino Fundamental II no CIEJA Butantã (Prefeitura de São Paulo), atua há mais de 10 anos como educador para adolescentes, jovens, adultos e idosos na rede pública de ensino.

Vanessa Elsas Porfirio de Faria – Professora de Português do Ensino Fundamental II no CIEJA Butantã (Prefeitura de São Paulo), atua há 9 anos como educadora para adolescentes, jovens, adultos e idosos na rede pública de ensino e ONGs. Aluna  do  Programa  de  Pós  Graduação  em Educação  da  Universidade  de  São Paulo,  desenvolve  a pesquisa “Trajetória de Formação do Projeto CIEJA: o papel da participação dos atores locais”.

 

A partir das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vai ele dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade. Vai humanizando-a. Vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo é o fazedor. Vai temporalizando os espaços geográficos. Faz cultura. (FREIRE, 1967)

No Centro  Integrado  de Educação de Jovens e Adultos do  Butantã (CIEJA Butantã), em todo início de ano, como em geral ocorre nas escolas, desenhamos mais um plano de voo ao qual pretendemos nos lançar com nossos alunos.

Cuidamos atentamente  para  que  se  possa  (re)conhecer  de  onde  partiremos juntos,   tentamos  vislumbrar  quais  serão  os  desafios  do  percurso,  pensamos  nas estratégias que podem nos ajudar a driblá-los. Assim, idealizamos com cada aluno um lugar para pousar e poder partir, depois, para mais longe.

Em 2011 não foi diferente, enchemos as nossas bagagens com outras que se apresentaram  em  diferentes  turmas  e  desejamos  novamente  que  outro  voo  fosse possível. No entanto, dessa  vez o que nos mobilizou foi a possibilidade de que os estudantes  pudessem  transformar  o  olhar  sobre  o  próprio  espaço,  participar  mais efetivamente das decisões, de que pudessem criar  um caminho coletivo para construção do conhecimento.

Após o  ingresso  no  curso  de  especialização  “EJA  e  Economia  Solidária”, ganhamos a companhia dos saberes, engajamento e vigor de jovens estudantes do ITCP USP e de professores da UFABC e USP, que somaram à bagagem também a intenção de semear relações sociais mais justas e solidárias.

Para tornar concreta a possibilidade de planejar e fazer não apenas para, mas com os alunos, idealizamos o projeto CIEJA na RUA, no qual depositamos a crença de que eles poderiam ser sujeitos autônomos de sua aprendizagem para assumir um papel mais crítico e atuante também em suas comunidades.

Ousamos  ultrapassar  os  limites  de  nossa  atuação  como  professores  de  uma mesma área de  conhecimento para integrar outros saberes à nossa prática. No CIEJA Butantã, trabalhamos em equipes por áreas de conhecimento no ciclo I e II, de maneira que nossos planos de voos não são solitários,  mas partilhados entre professores de Alfabetização no Ciclo I, de Português, Inglês e Artes na área de Linguagens e Códigos; Ciências e Matemática na área de Ciências da Natureza e Matemática; e  História e Geografia na área de Ciências Humanas.

No CIEJA na Rua, que ocorre desde o início de março de 2011 durante Oficinas de  Estudo   nas   sextas-feiras,  tem  sido  bastante  enriquecedora  a  participação  das professoras de Artes,  Português, Alfabetização (ciclo I) e do professor de Geografia, além dos alunos em diferentes estágios de desenvolvimento, de maneira que os diversos saberes podem circular e se transformar entre todos.

As Oficinas de Estudo das sextas-feiras, com duração de 90 minutos, ocorrem no CIEJA Butantã com atendimento em diversos horários e projetos, que os alunos podem escolher e frequentar como reposição de aulas ou como atividades extras. Dessa forma, os projetos e atividades são compostos por alunos variados a cada semana, formulando uma nova organização que ultrapassa o grupo classe.

No CIEJA na Rua, a turma de estudantes foi bastante diversificada, porém, foi configurado  um  grupo  fixo  de  participantes  que  estiveram  mais  integrados  com  o coletivo e propostas ao  longo do ano. O grupo foi composto majoritariamente por mulheres e alguns homens que tinham frequência mais regular. Desse modo, todas as atividades  estavam  abertas  às  intervenções  de  alunos  diferentes,  embora  cada  uma tivesse um planejamento de começo, meio e fim. Entre os 30  encontros  realizados, alguns momentos dessa experiência, aqueles que julgamos mais significativos,  foram selecionados para compor este relato.

Nosso planejamento, dessa vez, contemplava três momentos distintos do projeto, que foram  recheados com os saberes, as descobertas e necessidades da turma para, a partir da vivência e avaliação dos estudantes, construir um retrato do espaço, propor e provocar  uma  transformação  do  mesmo.  Eram  eles:  sensibilização  e  mobilização; reconhecimento do território e intervenção coletiva.
Dessa forma, nosso plano de voo pôde ser constituído coletivamente, levando em consideração os olhares dos educandos e a possibilidade de que alcançassem mais longe. Decolamos com um pé no chão a que nós, alunos e professores, pertencemos e outro no chão em que gostaríamos de pisar. É nessa travessia que pudemos ensinar e aprender para além dos muros da escola.

Sensibilização e Mobilização


Atividade:   Caminhos   para   escola
Aluna Mariana Silva, módulo III

Essa etapa de nosso trabalho funcionou como base  para o processo de aprendizagem. Aprender é um verbo de ação, implica, portanto, uma relação ativa do sujeito com o saber, em que ele se disponha  a se deslocar do lugar conhecido e, muitas vezes, confortável. No entanto, todo movimento é resultado da aplicação de uma força, ninguém se move sem que haja algo que o incomode, inspire ou impulsione. Acreditamos que essa força não poderia se submeter ao acaso, à imposição do  conhecimento docente ou ao estado (muitas vezes estático) dos olhares  e sentidos  das pessoas  sobre  o mundo. Assim, entendemos que a sensibilização não se tratava de emocionar o grupo de alunos, mas sim de comovê-los, no sentido de colocá-los em movimento de aprender.

Foram    diversas    as    propostas    em    que    exercitamos    com    os    alunos    o desenvolvimento  dos  sentidos  do  tato  e  audição,  por  exemplo,  para  perceber  a composição espacial da escola, das ruas, avenidas, do bairro. Esse “aflorar” dos sentidos propiciou  também  que  os  estudantes  desenvolvessem  a habilidade de  investigar os lugares por que passavam para além do que viam, muitas vezes também com o olhar automático e desatento.

As duas primeiras atividades do projeto iniciaram com a sensibilização. Pedimos aos alunos que se apresentassem e dissessem de que bairros tinham vindo, quanto tempo tinham  demorado  em  chegar  à  escola,  se  vieram  de  casa  ou  do  trabalho.  Muitos disseram que tinham “vindo correndo” e duas mulheres disseram que vieram mais cedo e bastante tranquilas porque naquele horário “não tinha tanto  trânsito”. Em seguida, passamos um trecho do filme Baraka, do diretor Ron Fricke, que contrastava paisagens, sons  e movimentos entre espaços  urbanos  e rurais  de países  orientais  e ocidentais bastante diversos. Nosso intuito era provocar o estranhamento e reconhecimento das dinâmicas entre tempo e espaço com aquelas manifestadas pelos estudantes.

Após assistirem ao trecho do filme, pedimos aos alunos que se dividissem em pequenos  grupos, comentassem o que tinham percebido de diferente ou o que mais havia lhes chamado  atenção.  A discussão em grupos menores possibilitou que todos participassem    e    se    expressassem    nos    debates.    Em    seguida,    os    educandos compartilharam  as  questões  mais  polêmicas  ou  recorrentes  de  cada  grupo.

Muitos apontaram que o filme mostrava  “muita desigualdade entre os lugares, mas isso não tem jeito”, comentaram que “o tempo parece mais devagar no interior”, que “a cidade parece um formigueiro” e “parece que é tanto barulho que ninguém se ouve”, “todo mundo aqui sabe o que é viver na correria”.

 

Atividade: Caminhos para escola   |  Atividade: Pesquisa de Campo – o entorno da escola

As  observações  dos  estudantes  foram  mediadas  por  nós,  educadores,  que procuramos  transitar entre aquela consciência ingênua e a crítica [1]. Perguntamos, por exemplo, se aquelas  diferenças apontadas não poderiam existir em um mesmo país, cidade ou bairro. Nesse momento, uma das mulheres observou que entre eles mesmos isso era possível, pois “cada um veio de um jeito e de um lugar diferente para escola… uns vieram com pressa e outros sossegados”. Então, observamos que cada aluno tinha um jeito de circular na cidade e ocupava o tempo de forma diferente, mas isso não era assim por  acaso, a construção dos espaços, a organização dos tempos, a divisão do trabalho eram realizações  humanas e, portanto, culturais. Relacionamos as discussões como o nome do projeto “CIEJA NA RUA”, esclarecendo que pesquisar sobre o nosso entorno e os modos de viver nele poderia nos levar a aprender mais sobre nossa cultura.

Na atividade seguinte, retomamos o nome e intenções do projeto, mas dessa vez através da fala  dos estudantes. O grupo já não era o mesmo, muitos alunos voltaram nesse dia, alguns não, outros vinham pela primeira vez. Aqueles que vieram no primeiro encontro apresentaram, então, a ideia do  projeto. Disseram frases como “a gente vai aprender  o  que  tem  a  ver  a  rua  com  o  que  a  gente  aprende  na  escola”,  que pretendíamos “aprender porque a cidade é desse jeito”. Em parte, as  colocações dos alunos atenderam às nossas expectativas. Eles pareciam ter compreendido, afinal, que a escola não trataria de assuntos alheios à realidade, que o projeto se propunha justamente a ser uma ponte entre o conhecimento sistematizado sobre ela e a experiência deles; mas para  eles  ainda  pareciam  coisas  bem  diferentes  e  mesmo  um  mistério  como  seria possível  relacioná-las.  Complementamos  as  apresentações  e então  iniciamos  a aula tocando a música “Esquadros”.

Após    ouvirem    a    música,    que apresentava imagens recortadas, pedimos que cada   aluno  destacasse  uma  delas.  Foram várias aquelas  apontadas, as mais frequentes eram “vendo doer a  fome nos meninos que têm  fome”  e  “os  automóveis  correm  para quê?”.  Relacionamos as imagens à passagem do tempo, desigualdade na cidade, ritmos de trabalho etc. Percebemos, então, que a música apresentava várias cenas características do espaço  urbano. Relacionamos as cenas apresentadas na música com seu nome e destacamos a fragmentação  entre elas. Perguntamos por que ela ocorria e obtivemos respostas ligadas ao ponto de vista de quem cantava e só via as situações “de fora”, sem participar delas. “A moça está na janela de casa”, “está  na janela do carro”, “está vendo  televisão”.  Nesse  momento,  retomamos  o  verso  “eu  ando  pelo  mundo”  e dissemos  que  as  possibilidades  apontadas  por  eles  tinham  que  ser  investigadas  na própria música, além de diferenciarmos o cantor do compositor.

Aproveitamos para notar porque pensaram na televisão, destacando que era um meio de comunicação que também selecionava, isto é, recortava quadros da realidade para   transmiti-los.   Associamos   essa   ideia   à   expressão   “remoto   controle”,   que escrevemos  na  lousa.  Perguntamos  por  que  aquele  termo  poderia  ter  aparecido  na música,  quais  eram  seus  possíveis  sentidos.  Após  esclarecermos  o  significado  da palavra “remoto”, concluíram que a pessoa não tinha controle total sobre o que ela via “assim como na tevê”, notou uma das alunas.

Diversos outros aspectos foram analisados na música. Após a tocarmos pela segunda vez, notamos as diferenças entre os sons e ritmos do seu início, meio e fim. Um aluno disse que “no final o som vai ficando devagarzinho e mais baixo”, concluíram que isso significava que “ela estava parando de andar”. Destacamos, assim, que a música tinha duas formas de representar a realidade, a linguagem sonora e verbal, notamos que essas linguagens permitiam que as cenas se formassem na nossa imaginação com apenas algumas “pistas”.

Após a  análise  da  música  propusemos  aos  estudantes  que  representassem, individualmente,  através  da  linguagem  verbal  ou  visual,  os  pontos  que  eram  mais significativos  em  seu  caminho  até  a  escola.  Desta  vez,  eles  seriam  os  autores  e representariam  através  de   uma   percepção  única  suas  trilhas.  Muitos  escolheram desenhar, outros escolheram escrever. As produções foram reunidas ao redor de uma folha que  representava o CIEJA. Dessa forma, ao dispor suas produções ao redor da folha, os alunos compuseram um primeiro retrato de nosso entorno, que seria base para nossos próximos estudos de reconhecimento do território.

Reconhecimento do território

As atividades dessa etapa eram promovidas na perspectiva do estudo de campo. Nosso intuito nessa fase do projeto era fortalecer o sentido de pertencimento dos alunos em relação ao território escolar. Acreditamos que para pertencer a algum lugar ou grupo era preciso se reconhecer neles,  encontrar algo que os vinculasse ao indivíduo. Ao mesmo tempo, esse sentido de pertencimento seria construído na medida em que aquele lugar  fomentasse  descobertas  sobre  ele  e  para  além  dele.  Dessa  forma,  após  os exercícios  de  sensibilização,  seria  possível  partir  de  uma  percepção  singular  para compor o todo, um todo constituído pela experiência e conhecimento sistematizado.

Foi bastante marcante, entre as atividades desse eixo, aquela que nomeamos de “Pesquisa de Campo na Escola”. Essa atividade inaugurava essa nova etapa de nosso trabalho. Após esclarecermos o que era e para que servia uma pesquisa de campo, ela teve início com um desafio: preencher com dados singulares o centro daquele primeiro “retrato” construído na etapa anterior, ou seja, recolher dados que retratassem a nossa própria escola.

Para tanto, dividimos a turma de alunos em três grupos que se revezaram entre três  instrumentos  de  registro  sobre  o  nosso  lugar:  fotografia,  gravador  de  sons  e frotagem [2]

Foi muito interessante notar as diferenças entre os registros de uma mesma  técnica, a alegria dos estudantes em manipular os equipamentos (gravadores e máquinas), bem como a originalidade dos enquadramentos que buscavam e reforçavam seu papel autoral. Foi uma atividade  prática que mobilizou não só a sensibilidade dos estudantes, como também seu senso crítico sobre o espaço escolar.

 


Atividade: Pesquisa de campo na escola – coleta de dados    Atividade: Elaboração da planta da escola

Em aula posterior, os grupos comentaram como foi a execução dos trabalhos na coleta  de  dados,  expondo  dificuldades  e  reflexões.  Colocaram,  por  exemplo,  que ficaram surpresos com o fato de não terem percebido antes algumas características do ambiente escolar frequentado por eles diariamente.

Mostramos, então, aquele primeiro “retrato” da etapa anterior e passamos à sistematização  dos  dados  coletados,  visando  organizar  os  registros  obtidos.  Como atendemos  alunos  em  diferentes  estágios  de  aprendizagem,  aqueles  que  ainda  não escrevem com desenvoltura ficaram  responsáveis pela identificação das frotagens no verso das folhas. Os demais fizeram as legendas das fotos e escolheram algumas para comentar. Um dos alunos, por exemplo, escolheu uma foto de cadeiras empilhadas num canto e fez observações relacionadas à organização e limpeza da escola. Instigamos os alunos a apresentarem sugestões de intervenção sobre este tema.


Atividade: Pesquisa de Campo no entorno da escola – coleta de dados

Durante a observação das frotagens, alguns estudantes ficaram particularmente interessados por algumas texturas e pudemos conversar sobre a utilização dos diferentes materiais na construção civil de acordo com a funcionalidade, conforto e patologias da construção,    observando    aspectos    como    privacidade, acústica, temperatura, circulação de pessoas, entre outros. Dessa   forma,  a  escrita,  nesse  contexto,  assumiu  um sentido concreto, com função e objetivos claros para toda a  turma.  Não  foi  configurada  como  a  codificação mecanizada e com fim em si mesma, mas sim como uma escrita    significativa,    que    teria    leitores    e    seria instrumento de estudo de todo o grupo.

Na aula  seguinte,  reunimos  os  alunos  para  compartilharem  as  produções  e também apresentar a localização da escola por meio da ferramenta de mapas do Google. Os alunos localizaram a  escola no bairro. Aproveitamos para enfatizar no mapa as percepções  consideradas  importantes  pelo  grupo.  No  mapa  satélite,  por  exemplo, percebemos diferentes extensões do espaço verde ou concreto, que pudemos relacionar com o primeiro “retrato” construído pela turma, em que destacavam os poucos pontos verdes que viam no caminho para escola.

Já no mapa cartográfico, reparamos no uso do verde para diferenciar aqueles espaços ou as  ruas e avenidas de maior e menor movimento, correspondendo a tons mais fortes e fracos de amarelo. Nesse momento, um aluno observou que ele também tinha usado as cores como espécie de legenda ao realizar as frotagens. “Eu usei o giz verde para frotar as paredes que são verdes e o marrom para janelas, portas e grades” (que são marrons).

Pudemos  observar  no  mapa  outros  aspectos importantes    além    das    noções    de    representação. Perguntamos  aos  alunos  onde  estavam  os  rios,  por exemplo. Eles notaram que o curso dos rios coincidia com as avenidas de grande circulação. O professor de Geografia esclareceu que as terras foram desbravadas seguindo o curso dos rios, por isso aquelas rotas se tornaram lugares de maior acesso. Observou também que o curso dos  rios  foi  mudando em  nossa cidade devido  às  canalizações  que apagaram  suas curvas.


Atividade: Pesquisa de Campo no entorno da escola – coleta de dados

Localizamos no mapa, ainda, a direção dos bairros em que os alunos moravam, a leste, oeste, norte e sul da escola. Foi um momento bastante importante, porque muitos alunos não aceitavam que  estavam ao sul da escola, por exemplo, “eu moro na zona oeste  e  não  na  zona  sul”.  Então  esclarecemos  que  esses  termos  eram  referências geográficas e, portanto, eram fixas em relação à representação da Terra, mas mudavam de acordo com o ponto referencial.

Essas atividades foram apenas o início de nossa pesquisa de campo. Coletamos alguns  dados  da  escola,  investigamos  o  que  eles  nos  revelavam,  estudamos  e  os relacionamos  a  outros  saberes  para  então  construir  um  mapa  daquele  lugar.  Esse processo se repetiu, depois, em relação ao nosso entorno.


Atividade: Pesquisa de Campo no entorno da escola – coleta de dados

Percorremos  alguns  quarteirões  ao  redor  da  escola, caminhamos  com  máquinas  fotográficas,  gravadores, cadernos,   folhas   A3   e   giz   nas   mãos.   Recolhemos diversos materiais no  caminho: folhas de árvores, lixo, texturas, cores e palavras grafitadas nos muros. Esses elementos   compuseram,   assim,   um   mapa   diferente daquela região e propiciou o reconhecimento mais crítico de nosso território, que passamos a percorrer como pesquisadores curiosos.

Intervenção Coletiva

A partir do mapa do território escolar, delimitado e constituído pelo grupo, os alunos apontaram diversas problemáticas. Elas foram elencadas por eles até escolherem como objeto de intervenção a relação dos estudantes do CIEJA com a produção de lixo e sujeira nas ruas vizinhas, com o despejo das embalagens do lanche no chão. Em todo o  nosso  percurso  pelas  ruas  havia  “pistas”  da  passagem  de  nossos  estudantes.  Na passarela em frente à escola isso era mais visível ainda e incomodou bastante o grupo, pois não há lixeiras no local.

Com a situação-problema nas mãos, era chegada a hora de o grupo intervir naquela  realidade.  A  proposta  da  intervenção  necessitou  de  três  encontros  entre  a apreciação dos dados que  cercavam o problema, levantamento de possibilidades para alcançá-lo,  escolha  da  ação  a  ser  realizada e  elaboração  de plano  de  trabalho.  Os estudantes propuseram, enfim, uma intervenção silenciosa e impactante. Recolheram as caixinhas de embalagens descartadas em apenas um dia de aula  e as perduraram nas árvores em frente à escola.

A intervenção era uma tentativa de chamar a atenção dos outros alunos de maneira inusitada. Assim, eles também poderiam “estranhar” o que viam e refletir sobre  sua  ação.  Essa  intervenção  foi  avaliada  pelo grupo após duas semanas de sua realização. Os alunos consideraram  que  as  caixinhas  jogadas  no  chão  diminuíram  e comentaram sobre a curiosidade dos colegas sobre aquelas penduradas nas árvores.


Resultado da Intervenção

Uma das estudantes relatou que o projeto a ajudou a perceber melhor seu próprio bairro, ela passou a reparar no lixo em uma rua próxima de sua casa, lixo que já tinha se naturalizado ao seu olhar.  Segundo ela, com a experiência da intervenção se sentiu capaz  de  provocar  mudanças,  então   decidiu  procurar  o  líder  da  Associação  de Moradores de sua comunidade para providenciarem a limpeza do local. Arlinda contou que hoje o auxilia a pensar em estratégias e a vigiar para que as pessoas não descartem mais nada por ali.

O começo do fim ou o fim do começo?

No início do segundo semestre, os estudantes também avaliaram o que não deu certo, o que aprenderam e o que poderiam ter explorado melhor. Identificaram, assim como nós, pistas para os nossos próximos voos. Enquanto  educadores,  porém,  lançamos mão   de  outras  ferramentas  para  avaliar  nossa trajetória.   Percebemos,   por   exemplo,   que   ao trabalharmos juntos, saindo do conforto de nossas equipes de área ou  de ciclo,  fomos capazes de integrar melhor nossas ações e de  propiciar aos alunos uma vivêcia efetivamente transdisciplinar. Percebemos também que a participação de vários docentes na orientação das aulas  nos possibilitou acompanhar    melhor    o    desempenho    de    cada estudante e dar maior apoio na realização de suas atividades, além da divisão de tarefas ter facilitado o trabalho de registro e condução das aulas.

Notamos, no entanto, que alguns de nossos registros se perderam ao longo do caminho. O Diário de Bordo que usamos para avaliar alguns  encontros  e a Colheita das Palavras ao final de outros foram práticas menos frequentes  do  gostaríamos.  Nem  mesmo  nós  conseguimos  articular  um  momento específico para escrevermos e avaliarmos cada encontro em meio a outras demandas de nosso trabalho. No entanto, procuramos  aumentar nossa comunicação eletrônica, os encontros  nos  cafés  e  almoços.  Ao  mesmo  tempo  os  registros  ganharam  força  na utilização do Blog CIEJA na Rede, em que diversos recursos puderam ser utilizados.

Nossa avaliação foi preponderantemente positiva. Acreditamos que conseguimos fazer com que os alunos se vinculassem mais com a escola, com o grupo, com o saber. É visível o quanto instigamos  sua sensibilidade, vontade de aprender, de participar e intervir também em contextos diferentes  daquele do projeto. A escrita para nossos estudantes  já  não  é  mais  motivo  de  lamento  ou  tida  como  “tarefa”,  mas  como instrumento de nossas investigações. Muitas vezes as mulheres trouxeram nos encontros de sexta alguns textos, palavras e frases que tinham escrito durante a semana pensando nos problemas estudados ou observando as ruas.

Consideramos também que a fala da aluna Arlinda demonstrou uma apropriação de saberes  para além de nosso círculo de convivência e que demonstra, assim como outras estudantes, um comprometimento e autonomia no ato de aprender.

Juntamos  esses  aprendizados  percebidos  na  avaliação  do  fim  do  primeiro semestre para começar uma nova fase do projeto em agosto. Seguimos na perspectiva de Milton Santos (1979) de que o território está para além do local, de que o espaço é construído na dimensão das relações humanas. Então, dessa vez nossos olhos estariam mais voltados para as pessoas  que faziam parte do grupo, da escola, do entorno, das problemáticas levantadas pelos alunos no primeiro semestre.

Após reiniciarmos o projeto com a sensibilização, exibimos alguns curtas alunos levantaram perguntas sobre diferentes objetos de estudo que, invariavelmente, remetiam os estudantes à posição da mulher na sociedade. Perguntas como “Aquela mulher tinha cinco filhos, por que eles não a ajudavam?”, durante a discussão sobre o filme “Levante sua voz” ou “Por que só mulheres estão catando lixo?”, ao assistirem Ilha das Flores, além da observação sobre nosso próprio grupo e escola, nos conduziram a investigar a
situação das mulheres do CIEJA para aprender mais sobre sua condição na sociedade.


Atividade: Levante sua Voz (curta e debate)

Partimos  daquela  problemática  acerca  da  situação  da  mulher  na  sociedade, daqueles primeiros questionamentos acerca dos curtas assistidos e imagens trabalhadas (vide anexo), daqueles primeiros debates. Algumas hipóteses iniciais do grupo guiaram, então, nossos temas de investigação. Na verdade, esse foi um momento muito rico do segundo  semestre,  após  surgirem  as  inquietações,  os  estudantes  esforçavam-se  em compreendê-las.

Entre as hipóteses que levantavam para responder aos próprios questionamentos, destacam-se  aquelas  que  se  referiam  mais  à  esfera  de  sua  experiência  familiar  ou comunitária, que tomavam  forma na elaboração verbal ou escrita e se tornavam mais críticas através do diálogo. Algumas dessas hipóteses partiam do suposto de que aquelas mulheres trabalhavam catando lixo e cuidavam dos filhos sozinhas porque “não tinham marido”,  “porque  os  homens  a  abandaram”.  Questionamos,  então,  se   existiriam obrigações próprias dos homens e próprias das mulheres, quais seriam elas, por que seriam  elas vinculadas a cada um, se estariam se modificando. Pouco a pouco, as respostas dos estudantes revelavam que a situação da mulher também era diferente entre as diversas classes sociais, que estariam atreladas à sua entrada no mercado de trabalho, à escolaridade.

É assim  que  compreendemos,  por  exemplo,  a  fala  de  Dona  Rozalina:  “As mulheres agora tem que ir à luta atrás do sustento. Quer dizer, naquela foto5  [imagem utilizada em atividade de  sensibilização] mostra que sempre tiveram, mas agora não cuidam só da comida e da casa, mas das contas. É mais trabalho. Se bem que só as mulheres pobres, né? Não tem mulher rica naquele lixão, a rica ela vendia perfume”. Em  sua  fala,  Rozalina  condensava  algumas  questões  levantadas  nas  atividades  de sensibilização e debate.

A expressão  “quer  dizer”,  como  de  quem  se  corrige,  revelava  que  a  aluna percebeu que  a  mulher cumpria a tarefa de buscar e preparar a comida, cuidar dos afazeres domésticos, buscar o sustento há tempos, então, historicamente cumpria uma tarefa na família e na comunidade, um trabalho. Ao mesmo tempo, D. Rozalina revelava sua noção de trabalho e de luta atrelada à mulher rica e pobre,  revelava sua própria noção de mulher rica, como aquela que vendia perfumes. Essas noções foram  ainda debatidas na sala de aula, todos pareciam ter um “mas” a acrescentar à fala do outro.

O primeiro “mas” à fala de Rozalina surgiu de um adolescente: “Mas aquela Dona do perfume era rica? Não era nada, ela trabalhava. Mas tinha trabalho melhor, mas não era rica. (…) Ela devia ter estudado mais. Minha mãe tem estudo, mas não é rica. Só que ela trabalha também, trabalha em casa”.

“Mas  ela  tinha  trabalho  melhor  porque  tinha  marido,  filho  e  casa,  tudo certinho. Minha vizinha é até estudada, mas trabalha em casa porque não tem marido, trabalha de faxina. Lá no meu bairro quase não tem isso hoje em dia, hoje em dia as meninas engravidam e quem cuida é a vó e a mãe não quer saber de nada. Pouca gente tem isso tudo certinho.”, rebateu outra senhora. O debate  ia, então, sendo conduzido pelas percepções particulares e seu confronto com as ideias expostas por cada estudante. Nesse momento, guiamos a conversa esclarecendo que o filme e as imagens tratavam de situações singulares que representavam um fato geral. Já as falas dos alunos, muitas vezes, eram  situações particulares que se relacionavam umas às outras  e poderiam revelar também uma situação geral, uma característica, um traço comum à realidade das mulheres.

Esclarecemos    que    precisávamos    partir    daquilo    que    era   particular    para compreender o que poderia ser geral e vice-versa, assim, questionamos se “ter tudo certinho” como a aluna disse era a característica das famílias ou de poucas famílias, se seria uma característica das famílias “pobres” ou “ricas”, se as mulheres que estudavam mais tinham mesmo trabalhos melhores etc.  Enfim, procurávamos fazer com que os estudantes pouco a pouco refletissem sobre o fato conhecido  ou vivenciado de forma mais  crítica,  buscando  identificar  traços  comuns  entre  suas  percepções.   Então, discutimos que seria preciso saber mais sobre esse assunto, entender como e por que as mulheres viviam “daquele jeito”, isso seria construir nosso conhecimento sobre o tema.

Interpelamos os estudantes, então, sobre como poderíamos reconhecer os traços comuns sobre as mulheres e por que isso seria importante. Nossa intenção inicial era de que chegassem a pensar em  estudar a história da mulher na sociedade e mesmo que percebessem a importância do gênero na organização familiar, comunitária etc. Ou seja, pensávamos,  ainda  presos  à  nossa  própria  formação,  que  deles  pudesse  surgir  a necessidade de acessar um “conhecimento geral” para “iluminar” os fatos levantados.

Nesse  ponto,  os  alunos,  o  próprio  projeto  e  a  maneira  como  vinha  se desenvolvendo  nos  propiciaram  aprendizado:  se  nosso  objetivo  desde  o  início  era vincular o conhecimento ao território onde estávamos, às condições em que vivíamos nele, por que buscaríamos uma “explicação geral” ao dado vivido fora deles, sem antes, de fato, conhecê-lo? “É só perguntar para elas”, disse um dos estudantes. Essa fala nos chamou de volta ao projeto. Precisávamos, então, ir a campo e perguntar às mulheres da própria escola quais eram suas vivências, para então relacioná-las àquilo que pudesse ser “traço geral”. Essa fala do estudante, ratificada por outras “Para saber o que a gente tem de comum é só  perguntando”, nos redefiniu nossa expectativa sobre o projeto. “Perguntar como?”, questionamos já cientes de que o estudo dos traços comuns entre casos  particulares  pudesse  tão  rico  quanto  a  pesquisa  de  dados  gerais,  regionais, nacionais etc. “Tipo quando vão os homens em casa perguntar se tem geladeira, essas coisas”,  respondeu  o  aluno  referindo-se  aos  pesquisadores  do  IBGE.  Fazer  uma pesquisa! Uma pesquisa com as mulheres do CIEJA, esse seria, então, nosso trabalho no semestre.

Esse fato  foi  bastante  marcante  para  nós  durante  o  projeto.  A  partir  dele, pudemos  experimentar mais lucidamente o que já sabíamos: nossa formação tende a condicionar  o  modo  como  conduzimos  as  atividades  educativas,  muitas  vezes,  a limitando, mesmo quando, de pronto,  procuramos inová-la. Pudemos, então, aprender devido à abertura própria do projeto e à participação dos alunos. Aprendemos com eles, de  fato,  aquilo   que  pretendíamos  ensinar  no  semestre  anterior:  olhar  com  mais estranhamento, desmontar conceitos preconcebidos.

Nesse  momento,  experimentamos  as  palavras  de  Paulo  Freire  (1987)  já mencionadas  anteriormente “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si,  mediatizados pelo mundo”. É claro que compreender a história da mulher na sociedade continuava a ser importante, mas ela poderia tornar-se viva na realidade dos estudantes, afinal, desde o início, o  Projeto CIEJA na RUA apostara que o conhecimento da experiência poderia ser também objeto de estudo.

Foi assim que chegamos juntos à idealização de um questionário de pesquisa. Dentre as diversas ferramentas que poderíamos utilizar, escolhemos, os estudantes e nós (nessa ordem), a formulação de um questionário que permitiria conhecer mais sobre as mulheres  do  CIEJA.  O  questionário  era  um  instrumento  diferente  daqueles  que  já havíamos usado para coleta dos dados, porém, bastante rico para o processo de ensino- aprendizagem.

Desde o início, esclarecíamos que o questionário não corresponderia fielmente à realidade  de  cada  mulher  ou  da  mulher  brasileira,  mas  que  poderia  retratar  traços comuns à realidade das mulheres do CIEJA. Explicamos, então, a noção de “amostra” e elencamos os eixos da pesquisa,  segundo  aquilo que a turma considerava importante saber. Além de abordarmos a objetividade  necessária para execução daquela tarefa, passamos a investigar diferentes formas de construir um  questionário, com perguntas mais gerais ou específicas, abertas ou fechadas com opções delimitadas  pela turma, entre outros. Foram várias atividades para preparar a pesquisa.

Destacamos aqui a atividade em que se elaboraram as questões da pesquisa. Os alunos  elaboravam as questões oralmente, numa “tempestade de ideais”, seguindo os eixos determinados pelo próprio grupo anteriormente sobre aquilo o que queriam saber. Perguntávamos,  por  exemplo  “Quais  perguntas  podemos  criar  para saber o  que as mulheres fazem?”. Então, os estudantes formulavam questões. Uma professora e uma estudante eram escribas da turma.

Colocamos na lousa algumas palavras chaves de cada pergunta criada pelos alunos, para  orientar os educandos dos módulos de alfabetização e pós-alfabetização. Nesse momento, perguntávamos aos estudantes sobre como seriam escritas as palavras, quantas partes tinha cada uma,  as  letras do início e final, a formação  das sílabas.

Atentávamo-nos  para  os  dígrafos  e  interpelávamos  os  estudantes  dos  módulos  de alfabetização e pós-alfabetização (primeiro ciclo) a participarem da escrita.

Os alunos do segundo ciclo (módulo 3 e 4) intervinham somente quando os do primeiro    encontravam    mais    dificuldades,    ainda    assim    não    respondiam    os questionamentos, mas auxiliavam os colegas a descobrirem a escrita. Essa atitude não foi  solicitada   pelos  educadores,  mas  demonstrava,  então,  que  os  alunos  tinham consciência  da  aprendizagem  que  aquela  atividade  propiciava  aos  colegas  e  a  si próprios.  Ao  mesmo  em  tempo  que  se  reconheciam  detentores  daquele  saber,  ao “ensinarem” e auxiliarem os estudantes dos primeiros ciclos a responderem as questões propostas pelos educadores, eles se distanciavam daquele conhecimento, o examinavam de maneira diferente para que pudessem “ensiná-lo”.

Pensamos, então, com a turma, na melhor forma de condensar as perguntas e distribuir aquele questionário. Ao mesmo tempo, nós, educadores, desejávamos que eles participassem ativamente de sua elaboração, formatação, distribuição etc. Desse modo, a pesquisa se tornou também um desafio para  nós, que precisávamos pensar em uma estratégia  que  pudesse  integrar  todos  os  alunos  do  grupo  na  sua  sistematização  e produção escrita e, ainda, buscar solução para que as alunas da escola, dos  diversos períodos, pudessem respondê-la.

Assim,  após  algumas  discussões  da  própria  equipe pedagógica,  chegamos  à informática   enquanto  ferramenta  para  superação  de  nossos  desafios.  Através  do computador, seria possível dividir a digitação das perguntas entre os alunos, realizar a pesquisa de questionários semelhantes e  sobre o tema, distribuir os formulários de pesquisa e até mesmo sistematizar e divulgar os resultados. Foi deste modo que depois de pesquisarmos e aprendermos, nós próprios, um pouco mais sobre uma  ferramenta disponível em um site [3]  pudemos, então, utilizá-la nas atividades.

Essas atividades foram desenvolvidas, em grande parte, na sala de informática. Nossa  intenção inicial era refletir sobre o questionário de pesquisa que, utilizando a língua escrita enquanto ferramenta de comunicação para coletar os dados considerados importantes pela turma, deveria ser elaborado tendo em vista a leitura das mulheres que o  receberiam.  Foram  duas  atividades  para  escolha   das  perguntas  dentre  aquelas
levantadas anteriormente e para a adequação da linguagem.

Apresentamos aos estudantes a alternativa de realizar a pesquisa via questionário “online”,  tal   como  havíamos  aprendido.  Para  tanto,  preenchemos  com  eles   o questionário do Movimento Nossa São Paulo [4]  sobre quais deveriam ser as prioridades da prefeitura de São Paulo em diversas áreas. Nesse dia, os alunos puderam vislumbrar um  resultado  semelhante  ao  trabalho  que  desenvolveriam.  Sentados  em  duplas  de alunos dos ciclos iniciais e finais, os estudantes se ajudavam na leitura, manipulação do computador e respondiam o formulário na internet.

Em aula posterior, dividimos o trabalho de digitação do questionário: digitariam as perguntas os  módulos finais, e as alternativas os módulos iniciais.   O   questionário   foi,   então,   publicado online. Os educadores providenciaram a colocação de  um  link  para  seu  preenchimento  no  blog “CIEJA    na    REDE”.    Na    atividade    seguinte, na Rede apreciamos juntos o resultado do trabalho realizado e as alunas inauguraram a pesquisa com o preenchimento do questionário no blog. Havia, nesse dia, apenas um homem na turma, que fez um comentário sobre a pesquisa no blog.

Divulgamos o questionário na escola, essa já era parte da intervenção: chamar a atenção das mulheres para a importância de conhecer mais sobre sua vivência. Por um período de 1 semana, coletamos 57 respostas das alunas que tinham sido incentivadas à preencher o formulário online. Contamos com o envolvimento de todos os períodos, em que os professores e alunos participantes do projeto divulgavam a pesquisa e conduziam as mulheres interessadas à sala de informática para respondê-la.

O site, automaticamente, sistematizava os resultados, que foram apreciados pela turma do  projeto. Tivemos duas atividades que “desvendava” a relação entre aquelas formas de registro dos dados sistematizados e a realidade apreendida por eles. A leitura dos dados também foi, portanto, bastante importante para os alunos.

O projeto iria, aos poucos, se aproximando do final. Os alunos comentaram os resultados  e   elaboraram  uma  análise  dos  mesmos  em  grupos.  Essa  análise  foi condensada e colocada em uma apresentação em PowerPoint e será posteriormente divulgada no blog. Devido ao tempo restrito que nos restava até o encerramento do projeto (apenas  1  atividade), não foi possível realizar essa apresentação ppt por cada dupla, como havíamos planejado.

Na última atividade, os alunos pesquisaram também o resultado de pesquisas semelhantes sobre as mulheres e realizaram diferentes leituras e registros sobre o tema, de acordo com seu estágio de desenvolvimento.

Destacamos    que    o    uso    do    computador    pelos    estudantes    foi    bastante enriquecedor na aprendizagem, pois puderam se sentir mais incluídos no processo todo, além de apontarem maior facilidade para escrita e correção das palavras “aqui tá tudo pronto”,  fala da aluna de alfabetização ao se explicar porque gostava de ter aula na sala de informática. Senhora com idade já avançada, ela possui dificuldade para o desenho das letras e encontrou mais facilidade para escrever no computador.

Entre os resultados da pesquisa com as mulheres, nos chamou bastante atenção o fato de a maioria trabalhar fora de casa, mas de poucas delas conceberem as atividades domésticas enquanto o trabalho. Além disso, 100% delas responderam que pretendem continuar os estudos e grande parte encontra incentivo nos filhos ou amigos.

Os resultados da pesquisa serão utilizados, ainda, no próximo ano de atividades do projeto, pois consideramos que ela não é o final de nosso projeto, mas recomeço de outro, já mergulhado na nossa própria experiência e aprendizados, nossa e a dos alunos, que poderão ganhar novas companhias no próximo ano.

No segundo semestre, pudemos, então, trazer a vida das mulheres nas ruas, nas casas, no trabalho para dentro da escola e levar dos aprendizados construídos na escola outra leitura para sua vida na rua. O tempo foi nosso inimigo e também nosso aliado, se por um lado não pudemos intervir mais na realidade através dos dados que coletamos, coletamos dados para muitas intervenções e acumulamos saberes inestimáveis sobre o tempo de aprendizado  dos próprios estudantes,  que orientava a todo  o  momento a reorganização das atividades para  aquém ou além do que planejávamos.

Inspirados em Guimarães Rosa, sabemos que “o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas — mas que elas vão sempre  mudando” [5]. Por isso, acreditamos que ainda há muito que pesquisarmos junto com nossos alunos,  muitas outras escalas serão necessárias para fortalecermos nossos voos, empreendermos consertos, rever rotas. No entanto, se as pessoas não foram terminadas, tampouco foi o nosso lugar ou mundo. Depositamos no projeto a  esperança de que os jovens e adultos possam sobrevoar nosso território e continuar mudando  conosco. Nosso trabalho não acabou. Ainda existe bastante coisa que ele nos reclama a fazer, nos impulsionando a seguir voo firme mais adiante.

ANEXOS

Material utilizado no PROJETO CIEJA na RUA
Quadro 1 – Plano Geral do Projeto CIEJA na Rua

Cl
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PLANOS DE AULA

Atividade 1- Sensiblização
Semestre 1- Apresentação do Projeto: outro olhar para a cidade
Semestre 2- Retomar o Projeto: outro olhar para as pessoas

Apresentação

O primeiro dia de atividade, além de apresentar os objetivos e estratégias do curso, pretende sensibilizar o olhar dos estudantes para a configuração espacial de diferentes cidades do mundo, para a relação entre as pessoas, o seu ritmo de vida, as formas de trabalho, as diferentes paisagens.

Semestre 1: Apresentação do Projeto: outro olhar para a cidade
Utiliza-se um trecho do filme Baraka (de 00:42’ a 00:59’), documentário experimental de Ron Fricke, que apresenta através de fragmentos paisagens e situações que retratam as relações humanas e sua intervenção no mundo. Nesse sentido, essa atividade trata não somente da apresentação do curso, mas da construção de um ambiente propício ao diálogo, à crítica e à curiosidade.

Semestre 2: outro olhar para as pessoas
Utiliza-se o documentário A Ilha das Flores, para relacionar a utilização dos espaços com as relações sociais. Faz-se uma relação entre o espaço e o tema da intervenção realizada no primeiro semestre (lixo nas ruas do entorno), com intuito de despertar maior crítica da turma para as causas do problema abordado no primeiro semestre e os efeitos da intervenção realizada no cotidiano das pessoas.

Objetivo

  • Apresentar o Projeto;
  • Promover a integração do grupo e seu interesse em participar do projeto;
  • Levantar perguntas e temas de interesse para estudo do território;
  • Provocar o estranhamento ao próprio cotidiano a partir de referências diversas.

Metodologia

Após a apresentação dos alunos e educadores, a atividade tem início com o questionamento sobre o nome do projeto – CIEJA na Rua. Através dos apontamentos do estudante, apresenta-se a possibilidade de que a escola ultrapasse os limites de seus próprios muros, para reconhecer, no espaço em que se insere, novas formas de aprendizado.

Dessa maneira, apresenta-se a possibilidade de aprender através da observação curiosa, investigativa, itinerante e atuante, de maneira que aprender e ensinar possam ser práticas significativas e encontrar meios de desenvolver a relação de pertencimento aos territórios, propiciando também a intervenção dos sujeitos nos mesmos.

Após a apresentação do projeto, é exibido um trecho do filme/documentário que apresenta, entre outros temas, a diferença dos ritmos de vida, as comparações entre paisagens, formas de trabalho e linguagens. Após a exibição do filme, divide-se a turma em grupos menores. Cada grupo deve formular questões que se referem tanto às temáticas, como às linguagens utilizadas no filme, como forma de apresentar não somente o tema, mas de que forma ele é apresentado.

As questões devem ser debatidas nos grupos menores e expostas na roda ao final do tempo estimado. A exposição das discussões dos grupos na turma amplia as relações entre as questões propostas e a percepção da realidade da escola, da rua, do bairro, da cidade.

Encerra-se a aula com o convite para os estudantes retornarem no próximo encontro do projeto e trazerem mais colegas para participação.
Atividade 2 – Sensibilização

  • Semestre 1: Olhar para os trajetos à escola
  • Semestre 2: Olhar para os sujeitos da escola

Apresentação

Essa atividade trabalha com diferentes linguagens: sonara, visual e verbal. Através delas, pretende-se ampliar a percepção dos estudantes para os espaços que percorrem no dia-a-dia em seu trajeto para escola. Trata-se de um primeiro ensaio do mapeamento, com que se pretende demonstrar a possibilidade de usar uma ou mais sentidos para perceber e representar um espaço ou relações sociais.
Objetivo

  • Desenvolver a percepção sobre os espaços e pessoas através da utilização de diferentes sentidos;

Metodologia

Semestre 1: Como estímulo inicial para a atividade do dia, ouve-se a música Esquadros, de Belchior. Em seguida são levantadas as observações do grupo para interpretar a canção. Os educadores procuram ligar essas interpretações à vivência da oficina anterior do projeto. Após várias discussões sobre as diferentes formas de ver e olhar, é proposto aos alunos que elaborem uma espécie de mapa de sua trajetória até a escola da forma como os tenham na memória. Eles podem utilizar diferentes linguagens para realizar o mapeamento: desenho, escrita, colagem, entre outras.

Semestre 2: Após assistir ao documentário “levante sua voz”, divide-se a turma em grupo menores e pede-se que formulem perguntas que o filme provoca, bem como produzam algum registro de como comunicariam o retrato que fizeram da escola no semestre anterior. As perguntas e comunicações são, então, partilhadas e procede-se à seleção dos espaços/temas que serão estudados no segundo semestre.
Avaliação

A avaliação possui como instrumento o diário de bordo e palavras coletadas.

Atividade 3 : Reconhecimento do território
Mapeamento: coleta de dados
Apresentação

Essa é uma das atividades práticas do projeto, que além de promover a experimentação de técnicas

artísticas, instiga o estranhamento do olhar dos estudantes sobre os espaços escolares. Dessa maneira, pretende-se obter registros singulares e significativos sobre eles, de modo que possibilitem a reflexão e construção coletivas de um mapa da escola, além de escolher com o grupo o instrumento de coleta de dados que melhor atende à pesquisa do espaço/tema selecionado.
Objetivo

  • Sensibilizar o olhar do estudante para a percepção dos espaços escolares de forma mais crítica;
  • Coletar dados sobre os ambientes escolares através da utilização de registros diversos, inclusive através de linguagens artísticas.
  • Relacionar os instrumentos de pesquisa aos objetivos do grupo.

Metodologia

Semestre 1:
Apresentam-se três técnicas para registro dos espaços escolares: fotografia, frotagem e gravação, que privilegiam o uso da percepção visual, sonora e sensorial, respectivamente. A turma é dividida em grupos menores, que escolhem uma técnica de registro para iniciar a execução da proposta. No entanto, todos os grupos utilizam as três técnicas, cujos instrumentos são usados em forma de rodízio entre eles. Os estudantes são orientados a registrar lugares, superfícies e sons que mais lhes chamem a atenção ou possam melhor representar os diferentes espaços escolares. Nesse sentido, é possível obter dados mais objetivos e subjetivos sobre o espaço. Após a coleta dos dados através das três técnicas explicitadas, os grupos comentam como foi a execução dos trabalhos, expondo dificuldades e reflexões dos estudantes. Nesse momento, recolhem-se os registros realizados. No final da aula, pede-se aos estudantes que façam um rodízio para registrarem no diário de bordo o que ocorreu naquele encontro e como ele foi. Pede-se também que cada um escreva em papeletas uma palavra que condense o que o encontro representou.

Semestre 2:
No segundo semestre, os estudantes já possuem um retrato do espaço estudado e podem optar por aprofundá-lo ou abordar aspectos ainda não estudados. Desse modo, a coleta de dados deve partir das perguntas formuladas pelo grupo na atividade 1 e 2 em que avaliam o mapa produzido no semestre anterior. Dessa maneira, eles devem pesquisar e selecionar os instrumentos de coleta de dados que mais atenderão seus objetivos.
Avaliação

A avaliação possui como instrumento o diário de bordo e palavras coletadas.
Atividade 4 – Intervenção

Sistematização de propostas de intervenção
Apresentação

Nessa atividade os dados coletados e respectivos estudos são avaliados pela turma com o intuito de hierarquizar as problemáticas estudadas segundo interesse do grupo, levantar e eleger propostas de intervenção.
Objetivo

  • Promover a interpretação dos dados coletados;
  • Incentivar a seleção e organização dos temas abordados pela turma;
  • Buscar soluções e organizar propostas de intervenção;

Metodologia

O material sistematizado pelo grupo durante o curso deverá estar disponível a todos. Solicita-se ao grupo que agrupem os materiais segundo critérios próprios. Segue-se à análise dos critérios utilizados para listar na lousa os temas e/ou lugares apontados. Após dividir a turma em grupos menores pede-se que listem em ordem de prioridade os temas e/ou espaços sobre o qual consideram relevante agir para modificar o retrato encontrado. Após a realização dessa tarefa, apresentam-se as prioridades dos grupos verificando o tema e espaço mais recorrente. Segue-se com a criação de propostas para intervenção, que serão analisadas e eleitas na atividade seguinte.

Avaliação

Essa atividade será avaliada pelos registros do Diário de Bordo e funcionalidade para a atividade subsequente.

Letra da música utilizada na Atividade “Caminhos para escola”

ESQUADROS
Autoria: Belchior

Eu ando pelo mundo prestando atenção
Em cores que eu não sei o nome
Cores de almodóvar
Cores de frida kahlo, cores
Passeio pelo escuro
Eu presto muita atenção no que meu irmão ouve
E como uma segunda pele, um calo, uma casca, Uma cápsula protetora
Eu quero chegar antes
Pra sinalizar o estar de cada coisa
Filtrar seus graus
Eu ando pelo mundo divertindo gente
Chorando ao telefone
E vendo doer a fome nos meninos que têm fome
Pela janela do quarto
Pela janela do carro Pela tela, pela janela (quem é ela, quem é ela?)
Eu vejo tudo enquadrado Remoto controle
Eu ando pelo mundo
E os automóveis correm para quê? As crianças correm para onde? Transito entre dois lados de um lado Eu gosto de opostos
Exponho o meu modo, me mostro
Eu canto pra quem? Pela janela do quarto Pela janela do carro Pela tela, pela janela
(quem é ela, quem é ela?) Eu vejo tudo enquadrado Remoto controle
Eu ando pelo mundo e meus amigos, cadê? Minha alegria, meu cansaço?
Meu amor cadê você?
Eu acordei
Não tem ninguém ao lado
Pela janela do quarto
Pela janela do carro Pela tela, pela janela (quem é ela, quem é ela?)
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle

Imagem utilizada no 2º Semestre- sensibilização


Releitura de “As Respigadeiras”, de Millet.
Fonte: http://dmusicalizando.blogspot.com.br/2011/02/realismo.html

Leia também:


  1. [1]Usamos aqui as reflexões de Paulo Freire acerca da consciência ingênua e crítica.
  2. [2] A palavra “frotagem” é de origem francesa: “frottage”, deriva de “fotter”, esfregar. Frotagem consiste na técnica de colocar uma folha de papel sobre alguma superfície e esfregar lápis ou giz para gravar texturas. Auxiliou o mapeamento, pois registrava diferentes materiais usados na construção da escola e das casas, que se relacionavam a noções de conforto, estética e acessibilidade em termos  econômicos. Comparou-se, por exemplo, o uso do “chapisco” em paredes com o uso de pedra sabão ou ardósia, sendo possível discutir a origem e caminho desses materiais para a cidade, seu custo/benefício etc. A técnica também ajudou a demarcar defeitos nas construções como rachaduras ou buracos.
  3. [3] Google possui a ferramenta “Google Docs” que, entre outros recursos, disponibiliza modelos de formulário para pesquisa, link para seu preenchimento online, sistematização automática dos resultados (com gráficos, inclusive).
  4. [4]Ao mesmo tempo em que vislumbravam uma possibilidade de realizar a pesquisa via questionário online, os alunos participavam de uma inciativa que, assim como eles, fazia uma consulta pública sobre a percepção da realidade pela população que serviria para intervir nela. A consulta pública esteve disponível no site do Movimento Nossa São Paulo http://www.vocenoparlamento.org.br/
  5. [5]Rosa, Guimarães. Grande Sertão Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.